09 fevereiro 2015

antónio franco alexandre / a questão urbana


  1

  estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
  prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
  movimentam no espaço, e aos bandos
  os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
  é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
  translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
  que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
  dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.


  2

  movem nos muros, a vagina mineral das mães
  adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
  e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
  algum visível afastamento das madeiras, algum
  pensamento violentado, por isso as coisas permanecem sentadas
  e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.


  3

  arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
  entendem, decifram sob o grés as patadas da terra,
  espalham na violência um musgo que prenuncia a
  transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
  bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
  algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
  e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
  se perde pé muito de repente e se afundam as asas
  como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.


  4

  separam, mas esse
  é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
  as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
  nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
  contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
  como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
  onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia
                                                                        [desejámos.


  5

  outras, as que brilham, as que espalham um lenço verde
  ao pescoço dos cães, e largas redes no ar empalidecido
  invisíveis capturam, as que vêm
  de dentro de um muro, e sobre um muro movem
  ombros de grés, então é noite, apetece uma nuvem,
  uma pedra sem cor que nos oculte o peito, o sangue
  transborda, e os apitos soam com a fúria dos grandes animais.


  6

  vêm, talvez, do acaso, como grandes nuvens de musgo
                                                                [amordaçado,
  ou animais encostados, ou a violência de uma gengiva
  onde o sangue bateu com patadas de cuspo. uma manhã
  se afastam no rancor, recobertas de grés permanecem sentadas,
  prenunciando, talvez, o ronco insuportável de uma boca.


  7

  o que movem no ar movem no sangue, um grés animal,
  a madeira das mães anoitecidas.
  amealham no peito os grãos translúcidos, prenunciando
  algum afastamento decisivo.
  o que afastam capturam. é um novo muro, então,
  à sombra das cidades, deitado sobre a boca.



  antónio franco alexandre
  os objectos principais
  centelha
  1979




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