31 julho 2012

álvaro de campos / acaso


  


No acaso da rua o acaso da rapariga loira. 
Mas não, não é aquela. 
A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro. 

Perco-me subitamente da visão imediata, 
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua, 
E a outra rapariga passa. 

Que grande vantagem o recordar intransigentemente! 
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga, 
E tenho pena de afinal nem sequer ter olhado para esta. 

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso! 
Ao menos escrevem-se versos. 
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar, 
Se calhar, ou até sem calhar, 
Maravilha das celebridades! 

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos... 
Mas isto era a respeito de uma rapariga, 
De uma rapariga loira, 
Mas qual delas? 
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade, 
Numa outra espécie de rua; 
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade 
Numa outra espécie de rua; 
Por que todas as recordações são a mesma recordação, 
Tudo que foi é a mesma morte, 
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã? 

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional. 
Estaria eu a fazer versos em gestos e caretas? 
Pode ser... A rapariga loira? 
É a mesma afinal... 
Tudo é o mesmo afinal ... 

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo, e isto é o mesmo também afinal.



álvaro de campos



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