16 setembro 2024

josé carlos ary dos santos / nocturno

 



 

 
Como se fosses noite e me atirasses
Uma corda de músculos e rosas.
Como se fosses noite e me deixasses
Deslumbrado com todas as sombras,
Com todos os silêncios,
Com todos os passeios de mãos dadas com o
                                               [impossível,
Com todos os minutos,
Os lentos, os belos, os terríveis minutos
Que se escoam com a angústia nas escadas.
Como se fosses noite e acordasses
Todos os olhares furtivos aos bancos vazios,
Todos os passos hesitantes que ninguém segue
Mas que deixam na rua deserta,
Na cidade ausente,
O arabesco triunfal dum arcanjo que passa,
O rasto vitorioso dum condenado que dança,
Rindo dos deuses que o julgaram.
 
Como se fosses noite e arrastasses
O tule hierático e vermelho da cauda de todas as
                                                      [prostitutas
Que desafiam o mistério, roçagando,
A ganga de todos os operários
Que sofrem o mistério, fumando,
O cabeção ingénuo de todos os marujos
Que sonham o mistério, ondulando,
A renda esfarrapada, esvoaçante e preciosa de todos
                                                         [os invertidos
Que inventam o mistério, desesperando,
E a carne, o sangue,
O cheiro a suor e o sono de todos os vadios,
De todo os ladrões que dormem nas esquadras
E têm o mistério, ousando!
 
Ah! Se tu fosses noite e me atirasses
A um poço de membros e de raiva
Onde plantas carnívoras crescessem
E onde Deus – se existisse – talvez me abrisse os
                                                           [braços!
 
 
 
ary dos santos
a liturgia do sangue (1963)
ary, obra poética
edições avante!
2017




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