06 dezembro 2023

julio cortázar / manual de instruções

 
 
Ter de ganhar o dia-a-dia todos os dias, esbracejar num mundo pegajoso, ter de acordar todas as manhãs num repugnante cubículo, e satisfeito que nem um cão por tudo estar nos seus lugares: a mesmíssima mulher, os sapatos de sempre, o eterno sabor da eterna pasta dentífrica, a mesma tristeza das casas fronteiras, a suja tabuleta com o letreiro HOTEL DE BELGiQUE.
 
Enfiar a cabeça como um touro vencido pela multidão transparente em cujo centro tomamos o café com leite e folheamos o jornal para saber o que aconteceu num ponto qualquer do globo. Não consentir que o acto delicado de girar o trinco da porta, acto que tudo poderia modificar, se cumpra com a fria eficácia de um reflexo quotidiano. Até logo, querida. Passa bem.
 
Apertar uma colher na mão e sentir o seu gemido de metal, sua advertência suspeita. Dói negar uma colher, negar uma porta, negar tudo o que o hábito seduz com suavidade satisfatória. É tão mais simples aceitar a solicitude fácil da colher, usá-la para mexer o café.
 
E não há nada de mal em que as coisas nos vejam mudar.
 
Que ao nosso lado esteja sempre a mesma mulher, o mesmo relógio e que o livro aberto sobre a mesa de cabeceira recomece a andar na bicicleta dos nossos óculos, porque haveria isso de ser mau? Mas há que baixar a cabeça como um touro triste e empurrar para longe o centro do globo de cristal, até outro tão perto de nós, inacessível como o picador tão perto do touro. Forçar os olhos para o que no céu aceita teimosamente o nome de nuvem, sua réplica catalogada na memória. Não pense que o telefone te irá dará o número que procuras. Por que razão to daria? Somente o que já tens preparado e pronto, o triste reflexo da tua esperança, esse macaco que se coça à mesa e treme de frio, chegará aos teus ouvidos. Escavaca a cabeça a esse macaco, vai contra as paredes, rebenta-as. Alguém que canta no andar de cima! Nesta casa há um andar de cima, com outras pessoas! Um andar de cima onde vivem pessoas que nem imaginam o andar de baixo, e cá estamos todos na bola de cristal. E se de repente uma traça aparece na ponta de um lápis e palpita como um fogo cinzento, olha-a, eu olho-a, sinto esse coração pequeníssimo, oiço-a, a essa traça que vive na bola de cristal frio, nada está perdido. Ao abrira porta, ao chegar à escada, saberei que a rua está já ali em baixo; não o molde imposto, não as casas conhecidas, não o hotel em frente: a rua, floresta viva onde cada instante pode invadir-me como uma magnólia, onde as caras começam quando as olho, quando avanço, quando com os cotovelos, pestanas e unhas me atiro minuciosamente contra a massa da bola de cristal, e arrisco a vida enquanto avanço passo a passo para ir comprar o jornal à esquina.
 
 
 
júlio cortázar
histórias de cronópios e de famas
manual de instruções
tradução de alfacinha da silva
editorial estampa
1973




 

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