02 setembro 2023

jean cocteau / os heurtebise de jean cocteau


 



 No seu ensaio Opium e, sobretudo, em Journal d´un Inconnu, Cocteau conta como lhe nasceu o anjo Heurtebise:

 
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A semelhança entre as palavras ange (anjo) e angle (ângulo), a palavra ange faz-se angle se lhe acrescarmos um l (ou asa), é um acaso da língua francesa se existir acaso em matérias como esta. Mas eu sabia que este acaso deixava de sê-lo em hebreu, onde a palavra anjo e a palavra ângulo são sinónimos.
Na Bíblia, a queda dos anjos simboliza a queda dos ângulos, quer dizer, a criação toda humana de uma esfera convencional. Esvaziada da sua alma geométrica, feita de um enredamento de hipotenusas e ângulos rectos, a esfera deixa de assentar sobre os pontos que lhe garantiriam a emissão dos raios.
Eu também sabia que a queda desta alma geométrica é que importa em nós evitar, e que perder todos os nossos ângulos, ou os nossos anjos, é um perigo que ameaça os indivíduos excessivamente agarrados à vida.
 
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Acontecia-me, muito intoxicado, dormir intermináveis sonos de meio segundo. Um dia que fui visitar Picasso à rua La Boétie, no elevador julguei-me a aumentar de tamanho, ao lado de qualquer coisa de terrível e que seria eterna. Uma voz gritava-me: «O meu nome está na placa.» Um abalo despertou-me e li na placa de cobre das alavancas: ELEVADOR HEURTEBISE. Lembro-me de que falámos de milagres, na casa de Picasso. Picasso diz que tudo é milagre, e que milagre era ele não se derreter no banho como um torrão de açúcar.
 
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Verifico, à distância, como esta frase me influenciou. Resume o estilo de uma peça [Orphée] onde os milagres não devem sê-lo, devem estar ligados ao cómico e ao trágico, intrigar tanto como o mundo das pessoas crescidas intriga as crianças.
Eu já tinha deixado de pensar no episódio do elevador. De repente, tudo se alterou. O meu projecto de peça perdeu os contornos. À noite eu adormecia e acordava em sobressalto, incapaz de recuperar o sono. Durante o dia afundava-me e tropeçava numa massa de sonhos. Perturbações que se tronaram atrozes. O anjo habitava-me, sem eu ter qualquer espécie de dúvida, e foi preciso que a pouco e pouco o nome Heurtebise me obcecasse para tomar consciência dele.
À custa de o ouvir, de o ouvir sem o ouvir, se assim puder dizer-se de lhe ouvir a forma numa qualquer zona onde o homem não pode tapar os ouvidos, à custa de ouvir um silêncio que gritava esse nome em altos berros, à custa de ser perseguido por esse nome, voltei a lembrar-me do grito do elevador: «O meu nome está na placa», e nomeei o anjo que se revoltava contra a minha tolice, já que ele e não eu tinha a si próprio dado o nome. Ao ter nome esperei que me deixasse tranquilo. Estava muito enganado. A fabulosa criatura fez-se insuportável. Atravancava-me, abria-se, passeava, batia como as crianças no ventre da mãe. E eu não conseguia abrir-me, fosse com quem fosse. Tinha de aguentar o suplício. Porque o anjo me atormentava sem parar, ao ponto de eu esperar, recorrendo ao ópio, acalmá-lo com astúcia. Mas a astúcia desagradou-lhe e fez-me pagá-lo caro.
 
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O anjo não se preocupava muito com a minha revolta. Eu só era o seu veículo, e ele tratava-me como veículo. Preparava a sua saída. As minhas crises aceleraram-lhe a cadência e todas se fizeram uma só crise comparável à aproximação do parto. Mas parto monstruoso, que não beneficiava do instinto maternal e da confiança que daí resulta. Imagine-se uma partogénese, um casal formado por um só corpo e que dá à luz. Depois de uma noite em que pensei no suicídio, a expulsão teve enfim lugar na rua d’Anjou. Durou sete dias em que o vale-tudo da personagem ultrapassava todos os limites por me forçar a escrever contra vontade.
 
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No sétimo dia (eram sete horas da noite) o anjo Heurtebise fez-se poema e libertou-me. Fiquei apático. Olhava para a figura que ele tinha tomado. Mantinha-se afastado, altivo, por completo indiferente a tudo o que não era ele. Um monstro de egoísmo. Um bloco de invisibilidade.
Esta invisibilidade construída com ângulos que lançam fogo, este navio aprisionado nos gelos, este icebergue rodeado de água, permaneceu sempre invisível. Assim foi decidido pelo anjo Heurtebise. A sua configuração terrestre não tem, para ele, o mesmo sentido que nós lhe damos. Sobre ela acontece fazer-se uma dissertação ou um texto. Esconde-se, então, às nossas exegeses. Como costuma dizer-se, é desembaraçado. Quis penetrar o nosso reino. Que ele por lá se mantenha.
Quando o olho faço-o sem rancor, mas depressa desvio a vista. Os seus grandes olhos incomodam-me porque me fixam sem olhar.
Parece-me notável que este poemas estranho a mim me conte (estranho, a não ser na substância) e o anjo me faça galar dele como se o conhecesse de longa data e na primeira pessoa. Provando assim que a personagem seria inapta a ganhar rosto sem o meu veículo, e ao cabo e ao resto não poderia, como os génios dos contos orientais, habitar o vaso do meu corpo. A única maneira de uma figura abstracta se fazer concreta, continuando invisível, é contrair connosco matrimónio, reservar para si a parte maior, conceder-nos apenas uma dose infinitesimal de invisibilidade. E a reprovação por inteiro, bem entendido.
Na minha visita seguinte olhei para a placa. Tinha lá o nome OTIS-PIFRE; o elevador mudara de marca.
 
 
 
jean cocteau
o livro branco
trad. aníbal fernandes
assírio & alvim
2010




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