jorge roque / pouca terra
I
Rosto anónimo, esbatido pelo movimento, olha para o
exterior do comboio, mas não observa nada em particular, tem o olhar parado na
contínua viagem ou então perscruta a noite interior, reconstitui a casa que não
chegou a conhecer, cada um dos quartos, átrio, corredor, a sombra dos móveis
estendida no soalho, o trabalho secreto dos ruídos contra o fundo de silêncio,
percorre vagarosamente as raízes que se estendem sinuosas escuro adentro,
segue-as ao correr dos dedos, o seu curso interrompe-se abruptamente, há um
corte, uma falta, e ele olha-as nesse preciso momento, e o que vê são as mãos
vazias. A fotografia, recortada de um convite, não tem referência ao autor ou à
exposição a que pertencia. Atrás, a suportar a fotografia, o candelabro de sete
braços. Atrás, a história do candelabro de sete braços. Atrás, o grito desde o
primeiro homem, vibrado por vozes que se repetem e extinguem. Olha-me de cada
vez que passo pela mesa do telefone. Olha-me e não me vê, esquece-me sem nunca
me ter visto. Está ali para não me lembrar nada. Está ali para me esquecer de
ti nos gestos que, dia a dia, te apagam.
jorge roque
nervo/16
colectivo de
poesia
os comboios
são meros pensamentos
outubro 2022
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