08 novembro 2022

andrés trapiello / as ruas

 
 
Há uma hora nelas que é perfeita.
Essa hora tão breve
depois de ter fechado o último dos bares.
Hora de madrugada e quase noite,
de maquilhagem e tédio e o estômago frio.
A hora em que todos nos parecemos tanto
que não nos conhecemos e em que beijar se torna,
portanto, coisa inútil,
porque beijamos nada, uma miragem
debaixo da luz azul da alba
mais pura que o álcool e mais daninha.
A hora em que inferno e paraíso têm
uma porta comum: a debandada.
A essa hora as rua
a pessoas como tu ou como eu
reconhecem-nos e acompanham-nos
com o seu silêncio cúmplice.
E se a negra sorte quer
que vomites a tua vida numa esquina,
elas voltam a cara para outro lado,
e seguram-te pelo braço, como o melhor amigo.
 
 
 
andrés trapiello
poesia espanhola de agora vol. I
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1997
 



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