29 setembro 2022

ana hatherly / os pardais



 

Era de manhã e os pardais estavam de roupão
um roupão proletário de flanela
apertado de qualquer maneira abaixo da cintura.
Todos os pardais são fêmeas
senhoras 1900
com a cintura artificialmente vincada
e as nádegas em zeppelin.
Grandes olhos dolorosos
acusam a dureza das barbas de baleia
de resto órgãos de trituração
mesmo na baleia.
Uma vez vi um desenho mostrando como, graças ao espartilho,
os órgãos internos ficavam deformados e era curioso verificar
como os rins pareciam duas apetitosas salsichas
o que transformava o busto num confortável balcão de snack-bar
onde os viris machos iam dando displicentes dentadas enquanto
Freud observava que nem só os machos têm o amor húmido.
Mas eles não sabiam
e continuavam a sua digressão topográfica.
 
Era de manhã
e os pardais agitavam a cauda
como quem tem um tic nervoso.
Na capa dum livro um poeta de perfil estava meio zangado meio
atónito olhando para longe, para a eternidade, suponho, e por
isso o seu olho já tinha perdido pálpebra e pestanas. Na verdade
o cabelo tornara-se obsoleto e agora era apenas a simples passagem
do lápis do desenhador sobre a brancura do papel, o qual se tornara
entretanto roxo, talvez de sufocação, como quando se tem um
frasco de perfume tempo de mais debaixo do nariz.
Deve ser assim a sufocação da eternidade.
Talvez seja uma sufocação boa, contudo, como ler
qualquer coisa que se torna subitamente importante na nossa vida
sem sabermos porquê.
E de repente todo o resto se torna intolerável.
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980


 


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