21 junho 2022

roland barthes / o coração

 
 
CORAÇÃO. Esta palavra vale por todas as espécies de movimentos e desejos, mas o que é constante é que o coração se constitui em objecto de um dom – ignorado ou rejeitado.
 
1.
O coração é o órgão do desejo (o coração incha, desfalece, etc., como o sexo), tal como este é retido, encantado, no campo do Imaginário. O que é que o mundo, o que é que o outro vai fazer do meu desejo? Eis a inquietação onde se concentram todos os movimentos do coração, todos os «problemas» do coração.
 
2.
Werther queixa-se do príncipe de X…: «Ele aprecia o meu espírito e os meus talentos mais do que este coração que, no entanto, é o meu único orgulho […] Ah, tudo o que sei, qualquer outro o pode saber – o meu coração, sou o único a tê-lo».
Esperais-me onde não quero ir: amais onde não estou. Ou ainda: o mundo e eu não nos interessamos pela mesma coisa; e, para minha infelicidade, esta coisa dividida sou eu; não me interesso (diz Werther) pelo meu espírito; não vos interessais pelo meu coração.
 
3.
O coração é o que julgo dar. Sempre que esta dádiva me é devolvida, torna-se insuficiente dizer, como Werther, que o coração é o que resta de mim uma vez desaparecido todo o espírito que me emprestam e que eu não quero: só o coração me fica, e este coração que me fica sobre o coração é o coração destroçado: destroço de um refluxo que o fez encher de si próprio (apenas ao apaixonado e à criança se lhes destroça o coração).
 
 
(X… deve partir por algumas semanas e talvez mesmo mais; quer, à última hora, comprar um relógio para a viagem; a empregada finge: «Deseja o meu? Devia ser bem nova quando os relógios custavam esse preço, etc.»; ela não sabe que tenho o coração destroçado. )
 
 
 
roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017




 

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