25 maio 2021

yves bonnefoy / trata-se mesmo deste objecto

 
 
Trata-se mesmo deste objecto: cabeça de cavalo descomunal onde se incrusta toda uma cidade, com suas ruas e muralhas a correr entre os olhos, colando ao meandro e ao alongamento do focinho. Um homem soube construir com madeira e papelão esta cidade, e iluminá-la lateralmente com uma verdadeira lua, trata-se mesmo deste objecto: a cabeça de cera duma mulher a girar, descabelada, no prato dum fonógrafo.
 
Tudo coisas daqui, terra do vime, do vestido, da pedra, isto é: terra da água nos vimes e nas pedras, terra dos vestidos manchados. Este riso coberto de sangue, é o que vos digo, traficantes de eterno, rostos simétricos, ausência do olhar, pesa mais na cabeça do homem do que as perfeitas Ideias, que só sabem desbotar sobre a sua boca.
 
Que sentido atribuir a isso: um homem fabrica com cera e cores o simulacro duma mulher, adorna-a com todas as parecenças, obriga-a a viver, dá-lhe, graças a um sábio jogo de luzes, essa hesitação no limiar do movimento que o sorriso também exprime.
 
A seguir, munido dum archote, abandona o corpo inteiro aos caprichos da chama, assiste à deformação, às rupturas da carne, projecta no instante mil figuras possíveis, ilumina-se à custa de inúmeros monstros, sente como uma faca essa dialéctica fúnebre em que a estátua de sangue renasce e se divide, na paixão da cera, das cores?
 
 
 
 
yves bonnefoy
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021
 
 





 

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