19 abril 2020

ruy belo / poema quotidiano



É tão depressa noite neste bairro
Nenhum outro, porém, senhor administrador,
goza de tão eficiente serviço de sol.
Ainda não há muito ele parecia
domiciliado e residente ao fim da rua.
O senhor não calcula, todo o dia,
que festa de luz proporcionou a todos.
Nunca vi – e já tenho os meus anos –
lavar a gente as mãos no sol como hoje

Donas de casa vieram encher de sol
Cântaros, alguidares e mais vasos domésticos.
Nunca em tantos pés
assim humildemente brilhou.
Orientou – diz-se até – os olhos das crianças
para a escola e pôs reflexos novos
nas míseras vidraças lá do fundo

Há quem diga que o sol foi longe demais.
Algum dos pobres desta freguesia
apanhou-o na faca,  misturou-o no pão.
Chegaram a tratá-lo por vizinho.
Por este andar... Foi uma autêntica loucura.
O astro-rei tornado acessível a todos,
ele, que ninguém habitualmente saudava.
Sempre o mesmo indiferente
espectáculo de luz sobre os nossos cuidados.
Íamos, vínhamos, entrávamos, não víamos
aquela persistência rubra. Ousaria
alguém deixar um só daqueles raios
atravessar-lhe a vida, iluminar-lhe as penas?

Mas hoje o sol
morreu como qualquer de nós.
Ficou tão triste a gente destes sítios.
Nunca foi tão depressa noite neste bairro.



ruy belo
aquele grande rio eufrates
1961






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