08 março 2020

josé de almada negreiros / as quatro manhãs



QUARTA MANHÃ

Um ângulo de terra diante de mim
com o vértice no meu olhar.
Ora junta em montes
ora rasa nos vales
assim segue a terra até ao mar,
e antes ainda de lá chegar
a própria terra já parece o mar.
A luz do dia mostra a natureza
e os meus olhos vêem.
A minha imaginação dá respiração à natureza
e de cor completa-a com o resto do redondo
o que além do ângulo à terra faltava.
Não só a paisagem os meus olhos viam
mas a terra inteira no seu verdadeiro tamanho,
não como a possam ver os olhos
mas como a imaginação
tem modos de medição.
E mais do que a sua própria grandeza
eu via também,
via com os olhos e a imaginação
todas as idades da terra
em toda a sua duração.
Tudo começava lá, ao princípio,
num ponto:
um simples ponto sem dimensão,
e do qual partiam depois todas as linhas
todos os ângulos, cones  e sectores
de uma esfera infinita
da qual a terra era uma pequena reprodução
e eu uma pequena reprodução da terra.
Desde o ponto inicial até mim
a linha era única
e não pertence hoje
senão a mim.
No ponto inicial nasceram todos os destinos, até os destinos sem dono.
Jamais perdi o tempo com o mistério dos outros
ainda mesmo que as nossas vidas se cruzem.
Não são as nossas vidas actuais que se comunicam
já sei
mas sim os nossos mistérios que dialogam.
E eu acabo de chegar apenas ao limiar do meu mistério.
Eu tive d'inventar-me um génio discretíssimo
para escapar através dos séculos à mecânica das actualidades.
Para chegar até aos meus próprios pensamentos,
aos meus pensamentos só meus,
eu tive muitas vezes de dar voltas ignóbeis!
Mas até que cheguei aqui
a isto que eu buscava,
e que é o principiar em mim.
Desde o ponto inicial
já tudo começou para mim
e passados séculos e séculos
eu hoje vou exactamente em mim.


                                             Escrito de 1915 a 1935
                                             Publicado em Suduoeste - 1935




josé de almada negreiros
poesia
estampa
1971






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