19 maio 2019

agustina bessa-luís / poesia




A poesia, não acredito que seja esse estado nervoso tão doente e agitado. Alguns poetas parece que lhes arrancam os dentes ou deliram numa meditação assombrosa com coisas que nos descrevem o amor e a morte, mas não sabemos se se lhes parecem. A poesia, vou dizer-vos o que é: eu tinha uma avó velhíssima, de quase cem anos, que perdera já a memória do presente. Não reconhecia as filhas, que a não deixavam nunca só e a serviam continuamente. Não reconhecia os lugares da casa, a porta chapeada de zinco que abria para o caminho, a outra porta pequena que abria para o quinteiro. Mas, às vezes (eu fixo-me numa ou duas em que assisti a isso), ficava atenta à chuva que caía, e ordenava, levantando a mão tão branca e ociosa, ela que trabalhara tanto a amassar a farinha e carregara tantas abadas de legumes e de feijão, e carregara ao peito os filhos também. Ela disse, olhando pela janela a eira inundada: «Vem ali o teu pai e não tem casaco. Leva-lhe um casaco para que a chuva o não molhe.» Era uma cena que ela reproduzia fielmente passados mais de quarenta anos, e isso era poesia.

A melhor impressão que a poesia nos pode dar é esta: ficar de coração vagabundo, deixando a vareja estalar na janela as asas grossas, e não dar por isso, como um cão surdo.



agustina bessa-luís
dicionário imperfeito
guimarães editores
2008






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