10 março 2019

álvaro de campos / tramway



Aqui vou eu num carro eléctrico, mais umas trinta ou quarenta pessoas,
Cheio (só) das minhas ideias imortais, (creio que boas).

Amanhã elas, postas em verso, serão
Por toda a Europa, por todo o mundo (quem sabe?!)
Triunfo meta, início, clarão
Que talvez não acabe.

E quem sobe? Que sente? O que vai a meu lado
Só sente em mim que sou o que, estrangeiro,
Tem o lugar da ponta, e do extremo, apanhado
Por quem entra primeiro.

Que o que vale são as ideias que tenho, enfim,
O resto, o que aqui está sentado, sou eu,
Vestido, visual, regular, sempre em mim,
Sob o azul do céu.

Ah, Destino dos deuses, dai-me ao menos o siso
Ao que em mim pensa a vida de ter um profundo
Senso essencial, mas certeiro e conciso
Da vida e do mundo!

Sei, sob o céu que é que toca as minhas ideias,
Sob o céu mais análogo ao que penso comigo
Que este carro vai com os bancos cheios
Para onde eu sigo.

E o ponto de absurdo de tudo isto qual é?
Onde é que está aqui o erro que sinto?
A minha razão enternecida aqui perde pé
E pensando minto,

Mas a que verdade minto, que ponte,
Há entre o que é falso aqui e o que é certo?
Se o que sinto e penso, não sei sequer como o conte,
Se o que está a descoberto

Agora no meu meditar é uma treva e um abismo
Que hei-de fazer da minha consciência dividida?
Oh, carro absurdo e irreal, onde está quanto cismo?
De que lado é que é a vida?

8-10-1919



álvaro de campos
livro de versos
fernando pessoa
estampa
1993






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