21 novembro 2018

joaquim manuel magalhães / domingo de cidade





As ruas com um sol humedecido,
vem a chuva não se sabe donde;
no estreito rumor da multidão
de janelas, a água segue
por rasgões ao acaso aceso.
Incrédulo o teu rosto perde-se
no fundo verde de um retrato.

A vibração íngreme da tarde
acende o equilíbrio do amor
que já não quer dizer-se; refugia-se
na iluminura do fugaz encanto.
Tiras do bolso a caixa do incenso
com um osso cravado na madeira
à entrada de um bosque de betão.
Aí nos beijaremos, porque não?

O céu de vez em quando subia
para logo baixar. E na sua sombra,
ao gozo do frio, as bicicletas
iam no empedrado irregular.
Com o prazer de ir a qualquer lado
e demorar a chegar.

E depois das pontes e represas
chegaremos ao quarto aonde em água
o dia vai findar.
Com essa luz já quase adormecida
das noites tumulares.

Lâmpadas fugazes, mesas com tapete,
jarra de peónias do quintal,
animais degolados e sem ventre,
o pavio da faca no castiçal.
Restos de sarcasmos a boiar
depois do combate final.

E quando me perguntaste a idade
eu disse-te que tinha oitenta e oito
pesadelos no sítio da voz
e tu não riste com os vinte e dois
anos e disseste que então tinhas
quarenta e quatro, tantos quantos eu.
E nessa tripla progressão de dois
o trânsito duma vida passava;
e a maior passagem do que em nós
um outro não poderia nunca ter.

Ecce homo; assim hei-de sentir
ao abrir-te na camisa todos os botões.




joaquim manuel magalhães
sloten
livro de artistas
europalia 91
1991






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