07 fevereiro 2018

amadeu baptista / os selos da lituânia




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valha a verdade, estive sempre só
na adolescência. por isso, a escrita
serviu no desamparo para tomar
consciência de que há sempre uma voz
que recupera connosco dos inúmeros
desagravos que a vida vai fazendo
para além do limite suportável,
sendo que em tudo existe violência.
à música devo muito e ao cinema.
ao mar provavelmente devo tudo.
mas foi na escrita que sempre me revi
quando os grandes dissabores principiaram
a marcar-me na face sinais incontornáveis
de solidão e medo. ao meu redor
tudo me pedia que ficasse atento
a tudo quanto via. há um mistério
inquestionável que preservo e flui
para a memória e da memória chega.
é como um cadáver deitado à nossa frente
que não se pode explicar mas que podemos
ver por dentro, adivinhando
as manchas que lhe vão na alma
e tudo o que já foi e já sonhou
e teve como seu e está perdido, implacavelmente.
desse cadáver não sabemos nada,
quem é,
de onde veio,
para onde irá
em corpo ou espírito noutro tempo.
contudo, nos seus lábios ressequidos,
na boca cerrada e no olhar parado,
nos ombros sinuosos e nas despojadas mãos
está inscrito o fascínio do que é,
além do mais, notícia e expectativa
que no caos turbilhonante é um clamor.
tudo é deslumbramento, tudo deve
passar-se para os outros como se
o que é perseguido assinalasse
o decisivo momento da nossa epifania
e do nosso testemunho sobre a terra,
com a esperança e angústia de quem sabe
que nenhuma palavra é redentora
e um verso ou uma frase não nos salva
do que quer que seja. a escrita
é um incêndio ausente
e nessa ausência
só é possível ressuscitar dos mortos.



amadeu baptista
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017





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