V
     Existia alguma coisa para
denominar no alto desta sombria 
     masculinidade. Era talvez um
cego escorrer
     de sangue pelos anéis e
flores do corpo. 
     Sei unicamente que era a
força da tristeza, ou a força 
     da alegria da minha vida.
     Havia também outra coisa a
que se deveria dar 
     um nome belo e lento. Algo
que se cercava de lágrimas 
     como uma árvore se vai
cercando de folhas 
     inúmeras. Tudo isso começava
     a aparecer nas vozes e
inspirações como uma ardente
     confusão. Era primeiro uma
virtude. 
     Depois, este vagaroso
acender
     da noite. O sangue
despenhava-se
     nas lagoas e grutas da
carne. Hoje eu sabia 
     que era a tristeza, a tristeza — um poder 
     mais jovem que os demais.
Esquecia de novo os nomes, 
     e todo me circundava de uma
torrente
     silenciosa, de uma cítara
fortemente anunciadora.
     Nunca se deve dizer que um
rosto perde 
     as suas brasas quando se
inclina sobre a penumbra 
     de uma fonte, sobre um
instrumento rápido. 
     Porque o rumor ressalta na
noite parada, e pode-se 
     enlouquecer eternamente. Ou
porque a colher 
     pode ligar a terra à
violência do espírito.
     — Lá estariam sempre as
grandes arcadas de fogo, 
     as portas, a loucura das
pontes celestes
     aonde a invenção chega como
um frio arrebatamento. 
     Havia essa espécie de
vocação implorativa, a doçura 
     do corpo subtilmente preso
por crateras e picos
     ao tumulto das sombras.
     Eu abaixava-me e tomava como
nos braços 
     essa criança ignota.
     E porões enchiam-se de água,
eu seria em breve
     um afogado. Tudo me
inspirava
     nessa noite abrupta, entre o
começo e o fim
     do mundo. Como pode um
coração absorver
     tanta matéria, tanta
inocência da terra?
     Se era uma criança, sua vida
circulava
     indecisamente; se eram os
mortos,
     a distância tornava-se
infinita. Apenas
     a minha força se dobrava um
pouco, e um novo calor
     corria nas palavras
adormecidas
     e degelava as mãos que se
cobriam
     de um sentido impenetrável,
     — Essa forma amparava-se no
sexo repleto
     de espinhos e espelhos,
     e era uma espécie de retrato
sem névoas, um eixo, um grito,
     uma louca morte
     onde começassem a girar as
inspirações misteriosas.
     herberto helder
     poesia toda
     assírio & alvim
     1996
que poema! que luz!
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