05 setembro 2016

rui diniz / invocação de quem se amava



Bebi a desolação em Baltimore num
café. Sentia-me só. Escrevia cartas aos
exilados e tinha uma terrível dor de cabeça.
Por momentos vira os lugares alagarem-se
nas maldições dos mosteiros. Alguém me
lembrava Mr. Kite pagando as bebidas aos
poetas saídos da prisão, e, depois, a própria
prisão de Mr. Kite e a sua morte dias depois.
Chovia, Kite, nos teus cabelos sem cor. Tinhas
as mãos enfiadas nos bolsos, cheias flores
de obstinação. Eu lia os livros da hora
revoltada, os escuros atentados desses
dias,  inútil harmonia dos poemas. Para
mim, eram essas horas de um intenso
esquecimento e os poemas lidos desapareciam,
desapareciam os escritores da
infelicidade. Eu  procurei os lugares sombrios
e vi que tinham sido extintos, abandonados
na maior precipitação. Aí estive alguns
anos e aí vivi o obscurecido ópio da
minha vida, a decisão brusca dos teus
lábios de morta. Morta – eis como te avizinhavas.
Rindo, rias da minha vida áspera, de
revolucionário, aparecias frequentemente
nos cafés clandestinos da margem sul
e acusavas o que eu escrevia, as cartas
aos exilados.
Até que uma manhã eu próprio me ri
e vi lágrimas de medo transformarem-me
o rosto – era chegada a época da
nossa condenação. Era chegado o outono
com o seu cortejo de corpos amnésicos,
sua orgia desprovida de repouso.

  
rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977




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