01 julho 2016

rui diniz / a propósito da revolta nos países do sul



Talvez em Avignon no Outono a frivolidade
a bebêssemos num café por tempo escuro.
Esquecia-me de ann radcliffe que conhecera
no verão em san sebastian. Aí o mar inclinava
as ondas até ao seu corpo frágil, separava-lhe
os cabelos, quentes do sol e da adoração.
Ouvia Alice moderno recitar enquanto bebia
várias cervejas e fumava tabaco inglês. Na
holanda eu escrevera cartas aos amigos que
lutavam longe no país, à beira de um rio
que a noite fascista enegrecia. Dessa brasserie
as emoções partiam embrulhadas em álcool,
eu falava-lhes da estratégia, dos mortos e
sobretudo da respiração sufocada em hannover,
na praça das mil lanternas. Eu tinha então
o costume de escrever sobre as cartas, sobre
os filmes e os salões de jogo, onde bebia
por vezes até que me expulsavam. Nessa altura,
nas ruas frias e desertas, reparava em como
me fora fácil chegar à miséria, à fome
imensa dos exilados, à roxa degradação.
Vivi dois meses com uma prostituta suíça, perseguido
pelas suas pestanas trágicas, pelos seus longos
monólogos cheios de palavrões e pragas, insultando
os poetas que eu lia já possuído de indiferença.
Com o tempo fui-me esquecendo. As frases eram
compostas por um balbuciar vago e doloroso, como
se eu fosse apenas um alcoólico amnésico
incapaz de amaldiçoar. Talvez por isto, quando
uma manhã dei por mim sentado numa
esplanada em Avignon, a beber lentamente
a frivolidade de todos os outonos,
não me surpreendi.


rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977



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