07 junho 2016

herberto helder / o poema


III

Às vezes estou à mesa, e como ou sonho ou estou
somente imóvel entre a aérea
felicidade da noite. O sangue do mundo corre
e brilha. Parece que a minha carne
se distrai entre as coisas altas da primavera nocturna.
Ocupo-me nos símbolos, e gostaria
que o meu coração
entontecesse lentamente, que meu coração
caísse numa espécie de extática e sagrada loucura.

Porque, enquanto estou só e o céu rodeado de lírios
amarelos, e animais de luz, e fabulosos
órgãos de silêncio, descansa
sobre os meus ombros
seu doce peso antigo - eu penso
que haveria uma palavra vingativa e pura,
uma esfera com espinhos de fogo que me ferisse
primeiro na voz ou na castidade
ou na tenebrosa
fantasia, e que depois me ferisse
na minha própria morte, sob a intensa
profusão celeste.

Penso que deve existir para cada um
uma só palavra que a inspiração dos povos deixasse
virgem de sentido e que,
vinda de um ponto fogoso da treva, batesse
como um raio
nos telhados de uma vida, e o céu
com águas e astros
caísse sobre esse rosto dormente, essa fechada
exaltação.

Que palavra seria, ignoro. O nome talvez
de um instrumento antigo, um nome ligado
à morte - veneno, punhal, rio
bárbaro onde
os afogados aparecem cegamente abraçados a enormes
luas impassíveis.
Um abstracto nome de mulher ou pássaro.
Quem sabe? - Espelho, Cotovia, ou a desconhecida
palavra Amor.

Somente sei que a minha vida estremeceria, que
os braços sonâmbulos
iriam para o alto e queimariam a ligeira
noite de junho, ou que o meu
coração ficaria profundamente louco. E nessa
loucura
cada coisa tomaria seu próprio nome e espírito,
e cada nome seria iluminado
por todos os outros nomes da terra, e tudo
arderia num só fogo, entre o espaço violento
do mês de primavera e a terra
baixa e magnífica.

Com grandes dedos eu tocaria as trémulas
campânulas dos signos, e beijaria
as rodas excitadas do ar. Os ossos
cantariam sob os pequenos vulcões dos frutos
e, dentro dos tanques, tombaria a água
infantil da aurora. Comer ou sonhar ou estar
à mesa da fantasia nocturna
seria para um homem só, sob a abóbada da cabeça,
como o espírito caído dentro da forma
e a forma incrustada, como uma lâmpada,
na inspiração da cabeça.

– Cada boca pousada sobre a terra
pousaria
sobre a voz universal de outra boca.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



Sem comentários:

Enviar um comentário