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     Fim de vida. A velha língua
está ali.
escondida como uma carraça na orelha. Alimenta-se de tudo
     o que vejo e o seu ruído não
me deixa ver o que não vejo.
     Terei passado a minha vez
sem ver.
     A minha visão? Na gaiola de
um esquilo,
O incessante retorno das mesmas impressões & dos mesmos
                                                                              
[pensamentos
     insípidos até se tornarem
enjoativos;
     até apertarem o coração como
num torno: pulsações monótonas,
apagadas repetições que se atravessam subitamente, sem motivo aparente,
     a meio da noite, no desvio
de uma frase
     ou em sonho, um clarão muito
fugitivo,
uma fulgurante vertigem que, bruscamente, rompe os hábitos.
     Então a carraça desperta e
tudo volta a ser como antes.
     Os nomes de Keats, Shelley, Sir Joseph Cheyne
estão ainda escritos nas caixas de correio dos inquilinos,
     no corredor, à esquerda da
entrada. Uma flor
     cresceu nas telhas, na beira
do telhado. Esta manhã,
de madrugada, vista da janela, a cidade parece uma floresta
     petrificada de árvores
cinzentas sem folhagens,
     de troncos nodosos,
retorcidos sob o céu tempestuoso.
     Também a cidade é um alarme,
uma vertigem exacta
     no rumor das pulsações e dos
tornos.
Pisa, Tony, Régis, Signore Typoce & C.ª, enquanto dormis,
     eu, Pirro, vigio as letras
dos vossos nomes,
     que são as letras do meu
nome.
Biblioteca, armazéns, boutiques
de luxo, companhia de seguros,
     a cidade está construída
sobre o alfabeto e vive sobre a reserva
     das letras: vinte e seis
pulsações, em francês.
     Um dicionário & uma
gramática para rectificar a vista?
Que garantia? Terei passado a minha vida sob uma chuva
                                                                             
[de letras,
     tendo por vezes procurado
refúgio no amor.
Mas a língua do amor, entrecortada pelos suspiros, os silêncios
     e os gritos inarticulados do
prazer, é pobre,
aproximativa, inadaptada às esperanças que nela depositamos.
     O sexo de uma mulher é um
abrigo muito doce,
     um refúgio sem saída, que
semeamos de letras.
O amor nasce, alimenta-se, morre com a extinção provisória das
                                                                                     [letras
     que, imediatamente, renascem
das suas cinzas. O amor perece
     com as letras que restitui
ao mundo; e deixa-nos, de novo,
na mesma, às voltas com o velho alfabeto tomado de vertigens.
emmanuel hocquard
allée de poivriers en californie
tradução de nuno júdice
sud-express
poesia francesa de hoje
relógio d´água
1993
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