26 agosto 2014

leopoldo maría panero / pavane pour un enfant défunt



                                      À minha tia Margot


Dir-se-ia que estás ainda na balaustrada da varanda
olhando para ninguém, chorando.
Dir-se-ia que como sempre és ainda visto
que és ainda na terra uma criança defunta.
Dir-se-ia que se arrisca
o poema por alguém
como um disparo de pistola,
na noite, na noite semeada
de olhos desertos, de olhos sós
de monstros. Todos nós somos
crianças mortas, cravadas na balaustrada como por encanto,
na balaustrada frágil da varanda da infância, esperando
como apenas os mortos sabem esperar.
Dir-se-ia que morreste e que és alguém por fim,
um retrato na parede dos mortos,
um retrato de aniversário com velas para os mortos.
Mas não interessam a ninguém as crianças, os mortos,
a ninguém as crianças que viajam sós pelo país dos mortos,
e para quê, perguntas-te, abrir os olhos no país dos cegos, abrir os
olhos hoje,
amanhã, para sempre. Era melhor o Oeste, terras virgens, heróis
nos olhos
de um cinema desesperado, e os deuses que matam os homens
ferozes,
os deuses mais ferozes que os homens
os deuses cruéis da infância, os deuses
da inocente crueldade, pensavas, que se alimentam de cegos
e daqueles que mendigam o seu ser numa sordidez pícara,
se homens houver, homicida. Mas aventura não há, sabe-lo,
mais que por alguém, para alguém, como um poema,
como o arriscar de um voo no ar sem trânsito. É por causa
disso que não há infância neste país deserto. E também
por isso que ninguém poderá jamais suspeitar que conservas essa
beleza demente da infância, esse furor contra o útil do teu
corpo,
e essa mudez nos olhos, essa beleza
apenas vendável ao céu do suicídio, apenas a esses olhos: essa existência.
Mas a vida continua e tu arrastas-te como ela,
a vida continua como a ponte de Eliot2,
como uma ponte de mortos ou um fluxo
de sombras que se agarram
à mão cega no lodo para saber que estão mortos e
vivem. Essa vida de que falam
no inferno, os mortos entre si, os alucinados, os absurdos,
os orgulhosos sonâmbulos disputando com sangue
uma certeza alucinante; é um terrível deus obscuro.
Uma grosseira tragédia que fazem
a cada natal, os velhinhos, os defuntos,
com pessoas desaparecidas, com máscaras e ritos de outros tempos,
letreiros de néon e fogos fátuos: assim trabalha desde então,
desde então, essa raça
misteriosa que passa ao teu lado sem olhar-te ou olhar-se,
desde então, desde o primeiro dia
em que assomaste com pânico ao seu delírio. Desde que vivem,
talvez,
desde que não existe tempo mas destino e traço
de vida invulnerável à decisão de um olhar poderoso.
Aquele que é visto ou aquele que cai ao rio surdo
é o mesmo, é um morto
que se levanta dia após dia para
mendigar o olhar.
Porque todos levamos dentro uma criança morta, chorando,
que espera também esta manhã, esta tarde como sempre
festejar com os Outros, os invisíveis, os longínquos
algum dia finalmente o seu aniversário.


Narciso no Último Acorde das Flautas, 1979



leopoldo maría panero
antologia poética (1979/1994)
selecção, tradução e notas de jorge melícias
lume editor
2014



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