O morto fica mais só
quando quem fala lhe rouba
a última memória desse barco
desmesurado da infância,
construído sem vista para o mar.
O morto fica mais só ainda, 
quando quem ouve se esquece da música 
para escolher o seu próprio funeral, 
alinhando convidados e preferindo coroas 
de plástico a condizer com as lágrimas.
O morto fica mais só ainda, se possível, 
quando me distraio com o mel da luz 
nos vitrais ou sigo o gato amarelado 
para quem a morte é apenas uma questão de 
sobrevivência, talvez um jogo, se algum rato 
finge entregar-se com prazer às suas garras.
Hoje, pela primeira vez, não me chegam 
os dedos para contar os meus dias de veladora. 
Mesmo sabendo que nenhum ritual nos consola, 
tento apaziguar a terra que se abre a meus pés, 
plantando cravos condenados que nunca voltarão a florir.
E invejo secretamente o morto, porque já não precisa de 
conhecer a flor preferida de ninguém:
pode simplesmente deixar-se estar,
na certeza de que o chão não lhe voltará a falhar.
Os mais sós, afinal, são sempre os sobreviventes.
inês dias
resumo, a poesia em 2011
documenta
2012
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