30 setembro 2013

al berto / filhos de rimbaud



II


Não consigo dormir, nunca mais. Ando de um lado para o outro.
Canso o corpo, enquanto a língua segrega uma saliva exterminadora.
Lá fora, dentro da noite, os chacais... as hienas cercam a casa.
Mas o pior é este chacal que me esfarrapa as vísceras,
esta hiena que me devora o sonho.

Pela janela vejo a linha crepuscular da duna.
Um novo corpo liberta-se do meu e caminha fora de mim
-vejo-o afastar-se em direcção aos nevoeiros das cidades.
Sei, neste instante, que nenhum abraço chega para atenuar a dor da separação.
Afastados - tudo o que nos resta é começar a imitar a vida um do outro.
O que dissemos perdeu o sabor e o sentido.

Harrar, Aden, Lisboa, este silêncio... capaz de ordenar e desordenar o mundo...
o canto sublime das miragens.
Mas vai chegar o inverno, e a tristeza dos dias começa a zumbir à roda da cabeça.
Abri a janela. Avisto uma nesga de céu limpo.
Lembro-me de quando trocava um sorriso por um verso,
ou por um insulto. Imitávamos assim a felicidade...

(Mas) O sol fulmina a memória. Limpa-a da crueldade do passado.
(E) A vida, aqui, reduz-se a efémeros passos, surdas gargalhadas,
ideias que se evaporam lentamente.
Enfim, o mundo não é assim tão grande...
E a vida, afinal, é como as orquídeas - reproduz-se com dificuldade.

Mas estou cansado. Os olhos fecham-se-me com o peso das paixões desfeitas.
Imagens, imagens que se colam ao interior das pálpebras -
imagens de neve e de miséria, de cidades, de fome e de violência, de sangue,
de aquedutos, de esperma, de barcos, de comboios, de gritos...
talvez uma voz... o desejo de um sol impiedoso, sobretudo enquanto dormia.
E embarquei num cargueiro, desertei em Java, pensei mesmo construir uma casa
Mas não foi possível.

Ainda vejo aquelas árvores cobertas de ossos luminosos,
e a duna incendiada, o deserto onde posso continuar a reconstruir o universo.
Escavo no coração um poço de sal, para dar de beber ao viajante que fui.
Deixo o vento arrastar consigo a infindável caravana de ilusões.
E digo: que tudo se afogue na gordura das manhãs, que tudo silencie...
e uma língua de fogo atinja os livros que não escreverei.



al berto
filhos de rimbaud
revista ler
abril de 1997 




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