II
São dias de extermínio, agora. 
O punhal das horas já não 
cede ao alaúde nem ao cravo torturado 
pela mudez. Repugnam-me simplesmente 
estes dias devagar e não sei com que letras 
se escreve nunca mais o nome do amor 
(deixei de confiar a alma a um celeiro podre).
Quando a música de um homem assim 
não consegue demover-nos da angústia, 
percebemos que a vida é morte
— impossíveis os gestos, as fugas, os desejos.
Amanhece e eu não. O sono deixou-se 
pousar ao lado do livro que não pude ler 
e mesmo o que escrevi sobre a morte, 
embora exacto, era afinal aproximativo. 
Sou agora plenamente o meu cadáver. 
Ofereço-lhe um cigarro, o que sobra 
de cerveja, a memória das cantatas 
que me sa1varam do tédio, do suicídio 
e de mim próprio. Talvez seja um sentido, 
uma ânsia de dissipação que encontrou
o seu termo moral, espiritua1, orgânico. 
Não sei.
Todas as palavras se tornaram para o sangue 
uma mesma mentira, entre o exorcismo 
e a ameaça. No fundo, a dizer havia apenas 
isto: a luz que explode na janela
já não encontra nem corpo nem vontade.
manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002
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