20 fevereiro 2012

manuel de freitas / 1685-1750




II


São dias de extermínio, agora.
O punhal das horas já não
cede ao alaúde nem ao cravo torturado
pela mudez. Repugnam-me simplesmente
estes dias devagar e não sei com que letras
se escreve nunca mais o nome do amor
(deixei de confiar a alma a um celeiro podre).

Quando a música de um homem assim
não consegue demover-nos da angústia,
percebemos que a vida é morte
— impossíveis os gestos, as fugas, os desejos.

Amanhece e eu não. O sono deixou-se
pousar ao lado do livro que não pude ler
e mesmo o que escrevi sobre a morte,
embora exacto, era afinal aproximativo.
Sou agora plenamente o meu cadáver.
Ofereço-lhe um cigarro, o que sobra
de cerveja, a memória das cantatas
que me sa1varam do tédio, do suicídio
e de mim próprio. Talvez seja um sentido,
uma ânsia de dissipação que encontrou
o seu termo moral, espiritua1, orgânico.
Não sei.

Todas as palavras se tornaram para o sangue
uma mesma mentira, entre o exorcismo
e a ameaça. No fundo, a dizer havia apenas
isto: a luz que explode na janela
já não encontra nem corpo nem vontade.


  


manuel de freitas
[ sic ]
assírio & alvim
2002

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