23 dezembro 2011

antonio gamoneda / descrição da mentira





Neste país, neste tempo cuja angústia se desenha em lápides de
     mercúrio,

vou estender os meus braços e penetrar na erva,

vou deslizar na espessura do azevinho para que tu me advirtas,
     para que me convoques na humidade das tuas axilas.

Ainda há luz sobre os ramos abatidos e o meu valor descobre-se em
     sílabas nas quais tu e os rostos actuam como grânulos silvestres,

como espermas excitados até penetrarem na bugia do som,

até submergirem  o meu corpo em águas que não palpitam,

até cobrirem o meu rosto com as pomadas da majestade.

Não é uma glorificação, não é que tenha caído púrpura sobre os
     meus ossos;

 é mais belo e antigo: alentar sobre o vinagre até o tornar azul,
     adiantar uma faca e retirá-la húmida de uma exsudação que
     dignifica o esgrimista.

Agradeço a pobreza para que a pobreza não me maldiga e me
     conceda anéis que me distingam de quando fui puro e legislava
     na negação.

Cheiro os testemunhos do que é sujo sobre a terra e não me recon-
     cílio mas amo o que ficou de nós.

Estou velho de mim mesmo, porém há estigmas. Chegaram os vi-
     sitantes. Há formigas debaixo das chagas.

Sinto a fertilidade que se refugia na ira dos meus cabelos e ouço a
     fuga das espécies que nos abandonaram.

Cessei a compaixão porque a compaixão me entregava a príncipes
     cujas medalhas se afundavam no coração das minhas filhas.

Eu farei com os príncipes uma destilação que será nociva para eles
     mas excitante e doce na povoação como é o sumo guardado
     em vasilhas muito escuras.

Não recorrerei à verdade porque a verdade disse não e colocou
     ácidos no meu corpo.

Que verdade existe no ventre das pombas?

A verdade está na língua ou no espaço dos espelhos?

A verdade é o que se responde às perguntas dos príncipes?

Qual é então a resposta às perguntas dos oleiros?

Se levantares uma túnica encontrarás um corpo mas não uma
     pergunta:

para quê as palavras enxutas em cíngulos ou as construídas em
     esquinas imóveis,

as convertidas em lâminas e, em seguida, despojadas e ávidas?

Ou melhor: alguma vez fui cínico como asfalto ou pelame?

Não se trata disso, apenas que o asfalto possuía a minha memória e
     as minhas exclamações relatavam a perdição e a inimizade.

A nossa sorte é difícil reclusa na beladona e nos recipientes que
     não devem ser abertos.

Sujo, é o mundo; porém respira. E tu entras no quarto como
     um animal resplandecente.

Depois do conhecimento e do esquecimento que paixão me con-
     cerne?

Não hei-de responder mas sim reunir-me com tudo o que está ofe-
     recido nos átrios e na distribuição dos resíduos,

com tudo o que treme debaixo da noite.





antonio gamoneda
descrição da mentira
trad. vasco gato
quasi
2003


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