16 outubro 2011

querino / la notte


                                                 (ao som de Wise one, John Coltrane)




Naquela noite,
uma noite como essa,
eu te via, meu caro, deitado
sobre teu vômito a dizer palavras de morte,
a dizer o que eu…
o que…
eu também te via ali, abandonado
no banheiro, as calças arriadas,
e diante de você um espelho,
porque narciso tu era
e então a beleza te levou até ali,
até esse lugar de apenas solidão.
Ali eu também estava:
eu era o teu vômito, o teu espelho muito claro;
eu via coisas que ninguém mais
como testemunha
saberia
se comportar.
Ali eu também estava, numa noite como essa.
Mas eu não te compreendia,
assim como vocês não me compreendiam. Eu apenas observava.
Eu estava longe.
Eu era outra coisa que talvez agora…

O mundo se estendia a diante,
era um caminho, era a minha casa.
Eu estava indo.
In a silent way, eu estava indo. Mas
junto a você eu morria também, meu caro,
junto a você eu mergulhava nesse rio de teu mijo sobre o chão;
eu morria mais ainda,
a beleza também havia me levado até ali,
e mais ainda.
Mais longe ainda que vocês, eu estava indo.
Eu tinha chegado.
Eu via a morte. Eu via a face de –
Ela não estava mais ali.
Fazia pouco, ela tinha corrido trecho
para onde eu não poderia continuar.
Era o fim, meu caro.
Era o fim e eu não te compreendia.
Eu não compreendia a vocês que tanto me ouviam
falar das horas e horas de nossa fuga:
iríamos para onde, até onde,
eu me perguntava, até quando.
Vocês também me falavam de intervenções e danças,
e naquela noite dioniso dançava –
tínhamos estado com ele mais além,
no alto daquele morro fora da cidade,
em um teatro aqui agora.
A nós ele revelava segredos,
a nós que por essa antecâmara precisávamos passar
– e é essa a noite em que estamos.
Cada um na sua, estávamos juntos. Estamos juntos,
somos um – e não há transcendência alguma em tudo isso.
Dioniso é aquele que passa: passamos.

E agora o bojo de nossa vitória:
estávamos ali.
Eu estava ali e ela não, a sua ausência sim.
E era porisso que eu não compreendia a vocês
e nem vocês a mim.
Há sempre um ponto mais além, mais aquém
onde chegamos
e ninguém mais. Um pouco a esquerda
eu estava.
Segurei a tua mão por um tempo,
te ofereci o meu ombro,
mas não o bastante, eu sei.
Eu estava só.
Eu era apenas eu.
Não havia mais alguém ali.
O telefone não atendia, não tocava.
Sem a tua graça quem eu seria,
eu perguntava. Um mundo se desfez,
um caminho, a minha casa.
Esse estradar,
não mais.
Não mais, eu dizia: não mais
(e não era para vocês esse meu desalinho,
mas para quem ali não mais estava,
para a parte que nos falta nessa busca por quem somos).

Eu era ninguém,
e o seu nome, mulher, eu escrevia
em passos indecifráveis, numa língua estranha
(havia um tinto derramado no chão, se bem me lembro).
Vocês não me compreendiam.
Talvez nesse instante.
Ela sim, até um tempo que agora já não é.
E agora, eu me perguntava, agora que foi aquela noite,
por onde vai esse estradar.
Eu que por tantas vezes disse Sim.
Eu que me gabava, mesmo sem querer,
de tudo isso que tem sido
a nossa vida. Eu tenho orgulho
de tudo o que construímos,
desse lugar que somos.
É para você, mulher, que traço essas linhas.
Pelas noites e dias de nossa presença,
é tua a origem
de todos os poemas. São teus.
Vocês não me compreendiam, não me compreendem,
mas sei o que digo.
Naquela noite eu estive só, eu era ninguém.

Estou só agora,
quero dizer, não há alguém aqui.






querino
sobre quantos cafés desperdiçamos
2011




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