28 dezembro 2010
jorge luís borges / outro poema dos dons
Graças quero dar ao divino
labirinto dos efeitos e das causas
pela diversidade das criaturas
que formam este singular universo,
pela razão, que não cessará de sonhar
com um plano do labirinto,
pelo rosto de Helena e a perseverança de Ulsses,
pelo amor que nos deixa ver os outros
como os vê a divindade,
pelo firme diamante e a água solta,
pela álgebra, palácio de precisos cristais,
pelas místicas moedas de Angel Silésio,
por Schopenhauer
que decifrou talvez o universo,
pelo fulgor do fogo
que nenhum ser humano pode olhar sem um assombro antigo,
pelo acaju, o cedro e o sândalo,
pelo pão e o sal,
pelo mistério da rosa
que prodiga cor e não a vê,
por certas vésperas e dias de 1955,
pelos duros tropeiros que, na planície,
arreiam os animais e a alba,
pela manhã em Montevideu,
pela arte da amizade,
pelo último dia de Sócrates,
pelas palavras que foram ditas num crepúsculo
de uma cruz a outra cruz,
por aquele sonho do Islão que abarcou
mil noites e uma noite,
por aquele outro sonho do inferno,
da torre do fogo que purifica
e das esferas gloriosas,
por Swendenborg,
que conversava com os anjos nas ruas de Londres,
pelos rios secretos e imemoriais
que convergem em mim,
pelo idioma que, há séculos, falei em Nortúmbria,
pela espada e a harpa dos saxões,
pelo mar que um deserto resplandecente
e uma cifra de coisas que não sabemos
e um epitáfio dos vikings,
pela música verbal da Inglaterra,
pela música verbal da Alemanha,
pelo ouro que reluz nos versos,
pelo épico Inverno,
pelo nome de um livro que não li: Gesta Dei per Francos,
por Verlaine, inocente como os pássaros,
pelo prisma de cristal e o peso de bronze,
pelas riscas do tigre,
pe1as altas torres de São Francisco e da ilha de Manhattan,
pela manhã no Texas,
por aquele sevilhano que redigiu a «Epístola Moral»
e cujo nome, como ele teria preferido, ignoramos,
por Séneca e Lucano, de Córdova,
que antes do espanhol escreveram
toda a literatura espanhola,
pelo geométrico e bizarro xadrez,
pela tartaruga de Zenão e o mapa de Royce,
pelo odor medicinal dos eucaliptos,
pela linguagem, que pode simular a sabedoria,
pelo esquecimento, que anula ou modifica o passado,
pelo costume,
que nos repete e nos confirma como um espelho,
pela manhã, que nos depara a ilusão de um princípio,
pela noite, sua treva e sua astronomia,
pelo valor e a felicidade dos outros,
pela pátria, sentida nos jasmins
ou numa velha espada,
por Whitman e Francisco de Assis, que já escreveram o poema,
pelo facto de que o poema é inesgotável
e se confunde com a soma das criaturas
e jamais chegará ao último verso
e varia segundo os homens,
por Frances Haslam, que pediu perdão a seus filhos
por morrer tão devagar,
pelos minutos que precedem o sonho,
pelo sonho e a morte,
esses dois tesouros ocultos,
pelos íntimos dons que não enumero,
pela música, misteriosa forma do tempo.
jorge luís borgesnova antologia pessoaltrad. maria da piedade m. ferreira
difel
1983
Belíssima poesia desse mestre que foi Borges.
ResponderEliminarJusta homenagem!
Grande abraço, sucesso, feliz 2011!