25 fevereiro 2010

andre breton e paul éluard / nada existe de incompreensível





Que atracção reuniu assim no fundo deste abismo, a mil metros abaixo do nível do mar, alguns dos maiores criminosos do nosso tempo? O local é fresco, mas mais claro que espinhoso. Nenhuma inquietação pelo futuro, nenhuma luz escondida, ali chama por aqueles que procuram através das paisagens as grandes confidências vivas. Uma pequena vivenda de arrabalde fura entre os maciços de coral e os cantos de esferas o seu pára-raios e o seu pombal junto da suave epiderme da alga vermelha. Os que habitualmente vêm a este sítio falam com mais gosto de ódio que de amor. O acaso, este ano, conduziu para esta clareira famosos artistas.
Troppmann, a Brinvilliers, Vacher, Soleilland, Haarmann… Que festa de caridade poderia gabar-se de reunir tão grandes artistas no mesmo cartaz? Contudo, lá estão sem nada terem combinado, por repouso, por estudo também, preparando na paz desta depressão os programas misteriosos de que não nasceram os executores esplêndidos.
Na serenidade das noites a Brinvillers ressuscita os seus venenos perdidos com aquela graça reflectida que lhe permite uma interpretação justa e verdadeira do pensamento arsenical. Vacher evoca a beleza das prostitutas apaixonadas, Haarmann come, Soleilland joga, Troppmann ri, todo um terreno vago nos olhos.
Na volta de alguns carreiros, roçando pelos mastros de barcos submersos, palavras sem canções misturam-se com esta atmosfera de piratas e talvez nunca o seu poder se tenha exercido com mais liberdade. A atracção que agiu nestes criminosos não deve ser mais do que esta pureza, este silêncio do abismo, que permite à linguagem assassina reencontrar, de certo modo, a sua juventude, o ponto de força e de acção onde é absolutamente ela própria, sem que nada a estorve ou a corrompa.
Nunca esqueceremos o dia em que, pela primeira vez, vimos Soleilland entrar no mar. O silêncio estabelecera-se pouco a pouco no quarto quando este homem alto e jovem se aproximou do leito e se sentou. Olhou a cabe leira clara pela qual passara a mão, recolheu-se e era como se tivesse querido passar um pouco da sua emoção e da sua sagacidade para os adoráveis anéis do seu cabelo. Nenhuma afectação neste recolhimento. Sentíamo-lo só e verdadeiramente naquele instante todos nós existíamos mais ou menos através dele. O fenómeno que liga tão estranhamente um homem àquilo que ama não existe aliás fora da autoridade, da exigência: é tanto um abuso da força como uma força e pertence à distracção dos demónios.
Quando a vozearia pública esmoreceu, quando ficou à altura do mar, quando deixou de ser o mais forte, Soleilland apenas descobriu os olhos da criança. Nascidos na surpresa eles afirmavam de súbito a vida num resumo violento e magnífico. Era qualquer coisa que nunca tínhamos encontrado: a obra encontrava neles a sua grandeza, a sua verdade, certas. Ela é longa: de uma ponta à outra a impressão é acrescida de um tal vaticínio que não era possível duvidar de ter assistido à consumação dos séculos.
Tudo se passava, dissemo-lo, sob o mar. Nós não fazíamos mais do que estar sobre a jangada com os nossos contemporâneos, logo bem pouco suspeitos de romantismo. Foi então que se admirou o génio de Soleilland o bem denominado. Compreendeu-se que ele se manifestava para além mesmo da inteligência, por um daqueles dons que fazem crer em qualquer coisa mais do que as habituais possibilidades humanas.
Quando dissemos a Soleilland o que pensávamos dele, respondeu-nos com uma voz juvenil:
— Porque me dizem isso?
— Porque o pensamos.
— Acredito em vós sem dificuldade.
Sorria, maravilhado por o poderem considerar como um dos maiores directores de consciência vivos.
— Mas que fiz eu? acrescentava ele. Sobrecarregava-nos de perguntas para nos ouvir justificar o nosso juízo; e, não tardou, como fosse a nossa vez de o interrogar, que nos contasse a sua infância ao sol, entre os princípios de seu pai e os pressentimentos de sua mãe que, muito jovem, o tinha iniciado nos grandes arcanos e não duvidava de que um dia teria de se tornar um «sol».
Trabalhava com alegria, e já era senhor da sua indiferença e senhor dos seus desejos, quando grandes perturbações sacudiram as suas mãos. Arrancou da parede a gravura que a adornava e representava um homem batendo numa mulher com um violoncelo e todas as suas forças, com o título: «Violoncelo que resiste». Tanto bastou, iria confessá-lo, para que os seus estudos terminassem, para que se tornasse naquilo que escutávamos naquela tarde, um jovem célebre nas profundidades da vida, e que conhecia a glória por não ter conhecido o coração dos outros.
Aquele que cumpre este destino magnífico só pensa em si mesmo: habita um mundo sem vítimas e não está surpreendido com a sua aventura, aqui em baixo, quando se fala com ele.










andre breton e paul éluard
as mediações
a imaculada concepção

tradução franco de sousa
estúdios cor
1972


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