Todas as noites, mergulhando a envergadura das minhas asas na memória agonizante, evocava a lembrança de Falmer... todas as noites. Os seus cabelos loiros, o seu rosto oval, os seus traços majestosos estavam ainda gravados na minha imaginação... indestrutivelmente.., sobretudo os seus cabelos loiros. Afastai, afastai pois essa cabeça sem cabelo, polida como a carapaça da tartaruga. Ele tinha catorze anos e eu um ano mais. Essa voz lúgubre que se cale. Porque vem ela denunciar-me?
Mas sou eu mesmo que falo. Servindo-me da minha própria língua para exprimir o meu pensamento, sentindo que os meus lábios mexem e que sou eu mesmo que falo. E sou eu mesmo que, contando uma história da minha juventude e sentindo o remorso penetrar-me o coração... sou eu mesmo, a não ser que esteja enganado... sou eu mesmo que falo. Eu tinha só um ano mais. Quem é então aquele a quem me estou a referir? É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. Sim, sim, já disse o nome dele... não quero soletrar outra vez essas seis letras, não, não. Também é inútil repetir que eu tinha um ano mais. Quem sabe? Repitamos, no entanto, mas com um penoso murmúrio: eu só tinha um ano mais. Mesmo então, a preeminência da minha força física era um motivo para sustentar, através do rude atalho da minha vida, aquele que se me tinha dado, mais do que para maltratar um ser visivelmente mais fraco. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco... Mesmo então. É um amigo que eu tinha em tempos passados, julgo eu. A preeminência da minha força física... todas as noites... Sobretudo os seus cabelos loiros. Muitos seres humanos viram cabeças calvas: a velhice, a doença, a dor (as três juntas ou em separado) explicam este fenómeno negativo de modo satisfatório. Tal é, pelo menos, a resposta que um sábio me daria, se eu o interrogasse a este respeito. A velhice, a doença, a dor. Mas eu não ignoro (sim, também eu sou sábio) que um dia, só porque ele me deteve a mão no momento em que eu erguia o punhal para trespassar o seio de uma mulher, o agarrei pelos cabelos com braço de ferro e o fiz girar no ar, a tal velocidade que a cabeleira me ficou na mão, e o seu corpo, lançado pela força centrífuga, foi embater no tronco de um carvalho... Não ignoro que um dia a sua cabeleira me ficou na mão. Também eu sou sábio. Sim, sim, já disse o nome dele. Não ignoro que um dia cometi um acto infame, quando o seu corpo era lançado pela força centrífuga. Ele tinha catorze anos. Quando, num acesso de alienação mental, corro pelos campos, apertando contra o coração uma coisa sangrenta que há muito tempo conservo como venerada relíquia, as criancinhas que vêm atrás de mim... as criancinhas e as velhas, que me perseguem à pedrada, soltam estes gemidos lamentosos: “Ali vão os cabelos de Falmer.” Afastai, afastai pois essa cabeça calva, polida como a carapaça da tartaruga... Uma coisa sangrenta. Mas sou eu mesmo que falo. O seu rosto oval, os seus traços majestosos. Ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. As velhas e as criancinhas. Ora, eu julgo que na verdade.., que é que eu ia a dizer?... ora, eu julgo que na verdade ele era mais fraco. Com braço de ferro. Aquele choque, aquele choque matou-o? Partiram-se-lhe os ossos contra a árvore... irreparavelmente? Matou-o, aquele choque provocado pelo vigor de um atleta? Continuou vivo, apesar dos seus ossos irreparavelmente partidos... irreparavelmente? Aquele choque matou-o? Temo saber aquilo a que os meus olhos fechados não assistiram. Na verdade... Sobretudo os seus cabelos loiros. Na verdade, eu fugi para longe com uma consciência agora implacável. Ele tinha catorze anos. Com uma consciência agora implacável. Todas as noites. Quando um jovem que aspira à glória, num quinto andar, debruçado sobre a sua mesa de trabalho, à hora silenciosa da meia-noite, sente um ruído que não sabe a que atribuir, vira a cabeça para todos os lados, pesada da meditação e dos poeirentos manuscritos; mas nada, nenhum indício surpreendido lhe revela a causa daquilo que ouve tão baixo, mas que ouve. Vê por fim que o fumo da vela, ao subir para o tecto, provoca, através do ar ambiente, as quase imperceptíveis vibrações de uma folha de papel presa à parede com um prego. Num quinto andar. Tal como um jovem que aspira à glória ouve um ruído que não sabe a que atribuir, assim eu ouço uma voz melodiosa que me diz ao ouvido: “Maldoror!” Mas, antes de desfazer o engano, ele julgava ouvir as asas de um mosquito... debruçado sobre a sua mesa de trabalho. No entanto, eu não estou a sonhar; que importa que eu esteja estendido no meu leito de cetim? Faço com sangue-frio a observação perspicaz de que tenho os olhos abertos, embora seja a hora dos dominós cor-de- rosa e dos bailes de máscaras. Nunca... Oh! não, nunca!.., nunca uma voz mortal fez ouvir estas tonalidades seráficas ao pronunciar com tão dolorosa elegância as sílabas do meu nome! As asas de um mosquito... Como é indulgente a sua voz... Ter-me-á então perdoado?... O seu corpo foi embater no tronco de um carvalho... “Maldoror!”
isidore ducasse
conde de lautréamont
cantos de maldoror
canto quarto
trad. pedro tamen
fenda
1988
Bom gosto!
ResponderEliminarprimas pelo bom gosto
ResponderEliminarobrigada Gil por estes momentos que me deliciam
um abraço
lena
lautréamont ainda há de ser redescoberto.
ResponderEliminarbom blog!!
Desde a minha adolescência que os contos de maldoror me dilaceram a alma.
ResponderEliminar...é sempre doravante, as palavras de um errante,pulsantes e perigosas; como o beliscar dos espinhos...No vale de um Poeta Maldito...
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