25 março 2007

book zapping #009 diários, kafka




1910


Os espectadores ficam de pedra quando o comboio passa.

«Se ele tiver sempre questões para me pôr.» O ô, solto da frase, voou como uma bola sobre o prado.

A sua seriedade mata-me. A cabeça no colarinho, os cabelos ordenados, imóveis, sobre o crânio, os músculos em baixo, nas faces, esticados no lugar devido...

A floresta ainda lá está? A floresta em boa parte ainda lá estava. Mas mal o meu olhar se afastou dez passos, eu desisti, de novo preso na conversa aborrecida.

Na floresta escura, no caminho ensopado, só me orientava pelo branco do seu colarinho.

Pedi em sonhos à bailarina Eduardowa que dançasse mais uma vez as czardas. Ela tinha uma larga fita de luz ou de sombra no meio do rosto, entre a orla inferior da testa e o meio do queixo. Veio precisamente naquele momento alguém com os repugnantes movimentos do intriguista inconsciente para lhe dizer que o comboio estava prestes a partir. Pela maneira como ela ouviu a informação, percebi horrorizado que ela não mais dançaria. «Sou uma mulher horrível, não sou?», perguntou. «Oh, não», disse eu, «isso não», e voltei-me para ir para qualquer lado. Antes, tinha-a interrogado sobre as muitas flores que ela trazia à cintura. «São de todos os príncipes da Europa», respondeu. Pensei que significado teria o facto de estas flores, que ela trazia frescas à cintura, terem sido oferecidas à bailarina Eduardowa por todos os príncipes da Europa.

A bailarina Eduardowa, amante da música, anda, quer de eléctrico, quer de outra maneira qualquer, sempre na companhia de dois violinistas que ela frequentemente manda tocar. Porque não há lei que proíba que se toque no eléctrico, se a música é boa, se agrada aos companheiros de viagem e se nada custa, ou seja, se depois não houver peditório. Na verdade, ao princípio é um pouco surpreendente, e durante uns momentos as pessoas acham um pouco deslocado. Mas em plena marcha, com forte corrente de ar e rua silenciosa, soa bem.

A bailarina Eduardowa não é tão bonita cá fora como no palco. As cores pálidas, as maçãs do rosto que esticam a pele de tal maneira que quase não há naquele rosto outro movimento mais forte, o grande nariz que parece elevar-se de uma cavidade, com o qual ninguém pode brincar — ver se a ponta é dura ou pegar nele levemente e puxá-lo de cá para lá e de lá para cá, ao mesmo tempo que se diz: «Mas agora vens comigo.» A figura larga com a cintura alta e saias com demasiadas pregas — a quem é que isto pode agradar —, ela parece-se com uma das minhas tias, senhora de certa idade, muitas tias de idade de muita gente têm este aspecto. Para estes defeitos, não se encontra porém na Eduardowa, cá fora, de facto nenhum substituto a não ser os pés, que são verdadeiramente bons, o que na verdade não é nada pára suscitar a admiração, o espanto ou mesmo o respeito. E assim vi tratarem muitas vezes a Eduardowa com uma indiferença que até os cavalheiros de maneiras muito correctas e usos mundanos não conseguiam esconder, se bem que o tentassem a todo o custo, perante uma bailarina tão famosa como não deixava de ser a Eduardowa.

A concha do meu ouvido sente-se fresca, áspera, fria, sumarenta como uma folha.

Escrevo isto levado, com toda a certeza, pelo desespero que me causa o meu corpo e o futuro deste corpo.
Quando o desespero se exprime tão categoricamente, se apresenta assim ligado ao seu próprio objecto, assim mantido à retaguarda como que por um soldado que cobre a retirada e que por isso se deixa despedaçar, isso não é o verdadeiro desespero. O verdadeiro desespero está constantemente a ultrapassar o seu alvo (com esta vírgula, verifica-se que a primeira frase estava certa).
Estás desesperado?
Sim? Tu estás desesperado?
Foges? Queres esconder-te?

Os escritores falam fedor.

As costureiras de roupa branca sob os aguaceiros,

Finalmente, depois de cinco meses da minha vida, durante os quais não consegui escrever nada que me satisfizesse, pelos quais nenhum poder me compensará, embora todos eles a tal fossem obrigados, lembrei-me de voltar a exprimir-me. Respondi sempre a este apelo; todas as vezes que de facto me interrogava, havia ainda qualquer coisa a fazer sair de mim, deste monte de palha que sou eu desde há cinco meses, e cujo destino parece ser deitarem-lhe fogo no Verão e extinguir-se mais rapidamente do que o pestanejar do espectador. Se ao menos isto me pudesse acontecer! E dez vezes deveria acontecer-me, porque nem sequer lamento essa época infeliz. O meu estado não é de infelicidade, mas também não é de felicidade, nem de indiferença, nem fraqueza, nem cansaço, nem outro interesse, mas então o que será? O facto de eu não saber está ligado à minha incapacidade de escrever. E esta penso que percebo, sem saber o porquê. É que todas as coisas de que eu me lembro não se me apresentam pela raiz, mas algures, pelo meio. Que alguém tente segurá-las, que alguém tente segurar a vergôntea e segurar-se a ela, à vergôntea que começou a crescer no meio da haste. Só poucos o conseguem, por exemplo, os saltimbancos japoneses, que sobem uma escada que não se apoia no solo mas nas plantas dos pés que um homem semideitado levanta, e que não se encosta a uma parede mas que apenas sobe para o ar. Eu não sou capaz, mesmo abstraindo o facto de a minha escada não ter à disposição os pés acima citados. E óbvio que isto não é tudo, e um tal pedido de informação não me dispõe a falar. Mas em cada dia pelo menos uma linha tem de me ser dirigida, tal como se dirige o telescópio para o cometa. E se eu um dia aparecer perante essa frase, atraído por essa frase, como por exemplo me aconteceu no Natal passado, quando eu estava tão longe que mal me conseguia controlar, quando eu de facto parecia estar no último degrau da minha escada, a qual, porém, pousava calmamente no solo e se apoiava à parede. Mas que solo, que parede! E no entanto essa escada não caiu, de tal modo os meus pés a comprimiam contra o solo, de tal modo os meus pés a empurravam contra a parede.
Hoje, por exemplo, fui três vezes insolente, com um condutor, com uma pessoa que me apresentaram, bom, foram só duas vezes, mas doeram como uma dor de estômago. Teriam sido uma insolência da parte de quem quer que fosse, quanto mais vindas de mim. Saí de mim próprio, lutei no ar no meio do nevoeiro, e para cúmulo: ninguém notou que fui insolente com quem me acompanhava, uma insolência sem mais, e tinha de o ser, tinha de assumir a sua verdadeira forma e a sua responsabilidade; mas o pior foi quando uma das pessoas que me acompanhavam não tomou essa insolência como sinal de um carácter, mas como o próprio carácter, me chamou a atenção para a minha insolência e a admirou. Porque não fico eu em mim? Na verdade, digo para mim próprio: olha, o mundo deixa que lhe batas, o condutor e a pessoa que te apresentaram ficam calmos quando tu te afastas, o último até cumprimenta. Mas isto não significa nada. Não consegues alcançar nada se renunciares a ti próprio, mas que perdes tu além disso no teu meio? A este apelo apenas respondo: também eu prefiro que me batam no meu meio do que bater-me a mim próprio fora dele, mas onde com os diabos fica esse meu meio? Durante um tempo vi-o estendido na terra, como que espargido com cal, mas agora paira só em meu redor, que digo?, nem sequer paira.

Noite de cometas, 17/18 de Maio. Juntamente com Blei, a mulher e o filho, de tempos a tempos escutei-me a mim próprio fora de mim, soava acidentalmente como o ronronar de um gatinho, mas sei lá.
Quantos dias voltaram a passar, mudos; hoje é o dia 28 de Maio. Não tomei eu uma vez a decisão de ter diariamente na mão esta caneta, este bocado de madeira? Creio já não a ter tomado. Remo, cavalgo, nado, fico deitado ao sol. Por isso tenho as barrigas das pernas em bom estado, as coxas nada mal, a barriga ainda passa, mas já o peito está em péssimo estado, e se a cabeça me assenta no pescoço...






franz kafka
diários (1910-1923)
trad. maria adélia silva melo
difel
1986




Sem comentários:

Enviar um comentário