23 outubro 2004

polaróide mínima #002



Tiziano Fratus


Tiziano Fratus (Bergamo, 1975) dirige «ManifatturAE», é poeta, artista, critico. Em 2001 participou com os seus quadros-poesia em Versus VII (Velan, Torino). Em 2002 leva à cena o monólogo-performance l’autunno per eleni, de que dirige o vídeo homónimo. Participou em vários festivais de teatro e poesia. Em 2003, publica lumina (Editoria & Spettacolo, Roma). O poema la barba da vecchio che segue tracciati sfumature d'asfalto usurato (Dubsters, Torino) participa no projecto Fioriture organizado por Isabella Bordoni para a Giornata Mondiale della Poesia, difundida pela KunstRadio de Vienna. Compôs o longo poema l’inquisizione (2000-2004), que está para ser publicado pela Editoria & Spettacolo. Dirigiu o videopoema anatómico nell’uomo (Dubsters, Torino, 2004), que terá estreia no X Festival Internazionale di Poesia di Genova. É critico no semanário «Il Domenicale» e no «Dramma.it», consultor do festival de dramaturgia Quartieri dell’Arte (Viterbo), Tramedautore (Milano), Incontrosensi (Pescara). Ensina história da dramaturgia do século XX em Moncalieri. Publicou os seguintes ensaios, conversas e volumes sobre o teatro contemporâneo: Lo spazio aperto. Il teatro ad uso delle giovani generazioni (Editoria & Spettacolo, 2003); L’architettura dei fari: 1990-2003, la nuova drammaturgia italiana (Edizioni Atelier, 2003). Trabalha na antologia Un albero in scena. L’arte dei versi nella drammaturgia contemporânea italiana.


A inquisição é um poema composto por 33 quadros. Na Turim dos nossos dias, simultaneamente reconhecível e transfigurada, um homem duplica–se algures na periferia norte da cidade: pensamentos, recordações, personagens selvagens, como selvagem é a mancha negra que, partindo do cérebro e do fundo da alma, se expande, infiltrando-se nas paredes, perturbando o silêncio, lacerando os tecidos e ocultando a lenta combustão dos corpos.



PICTA / n o i n t e r i o r d e h o m e m
poema de tiziano fratus
tradução de letizia russo e pedro marques


{ de poema a inquisição, Artistas Unidos / Editoria & Spettacolo, Lisboa / Roma, 2004 }

olho para o rosto do meu pai
um pai como todos os pais que recorda e traz gravados os sinais da vida
os seus erros e culpas e diferenças revivem em mim reflorescem para serem às vezes repetidos
queria abraçá-lo apertar-lhe os ossos e as fibras musculares
escancarar a boca ranger a segunda fileira de dentes e depois devorá-lo
engoli-lo digeri-lo no escuro do estômago durante muito tempo e deixá-lo decantar nas entranhas
para o queimar depois fragmentado em todos os seus pormenores a posição dos pés e a maneira de segurar no cigarro
e o sulco que os anos cinzelam nas bochechas de norte a sul
mas agora fui raptado pelos amores e pelos leitos da paixão por um outro tipo de carne
as estações andam de mão em mão e acumulam-se atrás do olhar que se faz mais prudente
a tua mão é uma recordação embora o aperto dela na minha ainda arda
uma epígrafe jaz na nossa sepultura o mármore frio
epitáfio de um amor que morre mais uma vez
tentámos mudar o mundo mas o mundo mudou-nos a nós
é mais fácil levar a cabo um holocausto nos nossos dias
agarrados aos sobretudos elegantes e sepultados debaixo de corredores de livros e mapas do mundo
as fotografias dos campos de concentração espalhadas pela velha europa amareleceram demasiado depressa
oxidaram e precipitaram-se no fundo dos rios
nem os pescadores nem os remadores que treinam os corpos no tibre no pó ou no arno
nem eles podem distingui-las debaixo dos sedimentos de lodo e dos resíduos industriais
um espectro com a varinha de hipócrates canta uma cantilena
não adormeçamos uma nova confusão em cima de sedimentos de uma outra confusão
este correr atrás este cansar-se para contribuir pessoalmente para a evolução do pensamento
já há demasiada vida incompleta a rebocar as paredes das salas de aula e as igrejas
somos homens pequenos que tentam fazer a história com um balde de areia
mas não suportamos a areia nas sandálias a máquina de lavar que encrava a massa empapada
a humanidade está avariada estragou-se logo depois da criação
indivíduos de sexo incerto andam às voltas com máscaras no rosto
únicos concorrentes para o mesmo farrapo de poder
apinham as rampas do metro e fazem mais compridas as filas nas escadas de vidro transparente (agora embaciado)
nos apartamentos cada vez mais lúcidos cada vez mais vagos habitam animais silenciosos
mas a recordação foge como fumo esvanece por cima das cabeças é vapor
a celebração da memória camufla as verdades históricas
será verdade que aqueles soldados os primeiros a saltar por cima dos portões de auschwitz não podiam olhar para os corpos filiformes os cadáveres empilhados que não paravam de nascer para além dos limites do olhar para além do vocabulário para além dos gestos das mãos
envolvia-os um sobretudo de frio que não obedecia às leis da física e da química
lá ao fundo uma fábrica desagregava um povo inteiro
era a morte que apertava a mão da europa que tinha apostado nos fascismos
meio século mais tarde gostava de te ver de piquete numa marcha nazi
mas no fundo é melhor deixarmos de nos chatear por qualquer coisa
o homem perecerá de certeza no momento de máximo fulgor
enquanto os poetas e os artistas sem bengala se queixam como sempre despenteados e maltrapilhos à frente de um copo de gin vazio
os jovens (já poucos) reproduzem no papel as ilações mas sem confiar nos pais e nos primos
com dor e compreensão por todos os mortos sem funeral e todos os corpos desfigurados privados do nome
os macacos e os papagaios monocromáticos peneirados por trás das grades do jardim zoológico de periferia
delira o pó levantado pelos touros durante um dia de corrida
enquanto as mãos juntas de uma mãe seguram debilmente as contas do rosário
ao alto seguras no queixo escultural e na altivez do perfil
as objectivas dilaceram o ar numa chuva de pontos de exclamação
e finalmente a lâmina que se espeta para cortar a artéria jugular e separar a cabeça do resto do corpo (já cadáver)
terá de fazer gotejar ainda o último derramamento de sangue enquanto o coração ainda pulsa
o jogo o medo a raiva o instinto a sobrevivência
tensos os músculos e os tendões nos membros ao longo da espinha dorsal
as flores e os beijos cercam o campo de batalha enchem as margens
transbordam e enfiam-se no corpete do toreador até iniciar o seu colapso
nenhuma clínica funciona para o comparsa sacrificado
ainda há guerra e as causas justas de novo excitam a imprensa
grandes discursos escritos nas mesas dos parlamentos
ser obstinadamente inconsoláveis é doença que encurta a vida
o luto é um bordado fino tecido na penumbra






Um poema da vertigem e dos limites físicos e mentais.
«La Repubblica»




por Nuno Travanca

Sem comentários:

Enviar um comentário