30 janeiro 2011
luís filipe parrado / abominação
Por um momento parece-te possível
um sentido para a vida. Acordas um filho,
desces as escadas, percorres as ruas encerradas
ao trânsito da memória, as máquinas
em movimento trabalham com escasso esplendor.
E reparas que corpo e pele coincidem,
que as vértebras dos cavalos sustentam
o ar, que no copo ficou uma borra do vinho
que te trouxeram amigos que já não estão contigo.
Mas nesse rasgo de luz logo regressa a abominação
do costume, e tu sentes o gelo dos sonhos,
a ferrugem dos livros cheios de saliva, o asco
e a suspeita pregados com chumbo ao peitoril
dos teus olhos negros que não compreenderão
jamais como, alguma vez, pudeste escrever
a palavra vida a seguir à palavra sentido.
luís filipe parrado
criatura
nr. 5 outubro
2010
27 janeiro 2011
josé de almada negreiros / mãe!
Mãe!
Vem ouvir a minha cabeça a contar histórias ricas que ainda não viajei!
Traze tinta encarnada para escrever estas coisas!
Tinta cor de sangue, sangue verdadeiro, encarnado!
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Eu ainda não fiz viagens e a minha cabeça não se lembra senão de viagens!
Eu vou viajar. Tenho sede! Eu prometo saber viajar.
Quando voltar é para subir os degraus da tua casa, um por um.
Eu vou aprender de cor os degraus da nossa casa. Depois venho sentar-me ao teu lado.
Tu a coseres e eu a contar-te as minhas viagens, aquelas que eu viajei,
tão parecidas com as que não viajei, escritas ambas com as mesmas palavras.
Mãe! ata as tuas mãos às minhas e dá um nó-cego muito apertado!
Eu quero ser qualquer coisa da nossa casa. Como a mesa.
Eu também quero ter um feitio que sirva exactamente para a nossa casa, como a mesa.
Mãe! passa a tua mão pela minha cabeça!
Quando passas a tua mão na minha cabeça é tudo tão verdade!
josé de almada negreiros
a invenção do dia claro
26 janeiro 2011
antonio sáez delgado / aviso
Que a vida nos oferece pessoas para no-las arrebatar pouco a pouco é coisa que aprendemos sempre demasiado tarde. Que a vida pode roubar-nos tudo, de repente, é coisa que nunca aprendemos. Mas precisamos de ter cuidado, convém manter a vida satisfeita e aceitar de bom grado os sorrisos dos seus fantasmas. Porque já a encontraram várias vezes com mau aspecto, nas tabernas mais imundas do porto. Porque alguém disse que ouviu da sua boca, em voz baixinha, a palavra suicídio.
antonio sáez delgado
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes
antonio sáez delgado
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes
25 janeiro 2011
violeta c. rangel / porque é tão alto o preço da vida?
O fumo, os cafés, o gajo que te traz de madrugada,
aquele parceiro que escapou, este que vem acordar-te,
as carícias, a coragem, uma manhã com Rimbaud…
Se o que ajuda a viver, o verdadeiro, custa quase nada
porque é tão alto o preço da vida?
violeta c. rangel
tradução de josé colaço barreiros
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes
22 janeiro 2011
gil t. sousa / um labirinto de vidro
30
um labirinto de vidro
palavras transparentes
dias quase limpos
no chão
sombras brancas sem raiz
gil t. sousa
falso lugar
2004
20 janeiro 2011
isabel meyreles / jardin du luxembourg
As crianças eram apenas
máquinas de gritar
quando escrevi o teu nome no chão
e me vim embora
isabel meyreles
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
instituto camões
2001
19 janeiro 2011
antero de quental / primeiros conselhos do outono
Ouve tu, meu cansado coração,
O que te diz a voz da Natureza:
- «Mais te valera, nu e sem defesa,
Ter nascido em aspérrima solidão,
Ter gemido, ainda infante, sobre o chão
Frio e cruel da mais cruel devesa,
Do que embalar-te a Fada da Beleza,
Como embalou, no berço da ilusão!
Mais valera a tua alma visionária,
Silenciosa e triste ter passado
Por entre o mundo hostil e a turba varia,
(Sem ver uma só flor das mil, que amaste,)
Com ódio e raiva e dor - que ter sonhado
Os sonhos ideais que tu sonhaste!» -
antero de quental
sonetos
18 janeiro 2011
natália correia / o sol nas noites e o luar nos dias
De amor nada mais resta que um Outubro
e quanto mais amada mais desisto:
quanto mais tu me despes mais me cubro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
E sei que mais te enleio e te deslumbro
porque se mais me ofusco mais existo.
Por dentro me ilumino, sol oculto,
por fora te ajoelho, corpo místico.
Não me acordes. Estou morta na quermesse
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie
nem teus zelos amantes a demovem.
Mas quanto mais em nuvem me desfaço
mais de terra e de fogo é o abraço
com que na carne queres reter-me jovem
natália correia
poesia completa
publicações dom quixote
1999
12 janeiro 2011
albert camus / os desinteressados
Durante milénios o mundo foi semelhante a essas pinturas italianas da Renascença onde, sobre as lajes frias, são torturados homens enquanto outros olham para outro lado na distracção mais perfeita. O número dos «desinteressados» era vertiginoso em comparação com o dos interessados. O que caracterizava a história era a quantidade de pessoas que não se interessavam pela desgraça dos outros. Algumas vezes os desinteressados também se tornavam vítimas. Mas passava-se tudo no meio da distracção geral e uma coisa compensava a outra. Hoje toda a gente faz menção de se interessar. Nas salas do palácio as testemunhas voltam-se de súbito para o flagelado.
albert camus
cadernos III
(caderno nr. 6 1948/1951)
trad. antónio ramos rosa
livros do brasil
1966
10 janeiro 2011
miguel serras pereira / desoras
I
Levei-te a minha casa mas nenhum
de nós dois foi capaz de me encontrar
tu por ser já talvez um pouco tarde
eu pelos anacronismos do costume
Por isso amada se apesar de tudo
nem sempre fomos só iguais a nada
teremos de arranjar novo teatro
onde a verdade logre melhor lume
mais capaz de a si próprio se tornar
esse instante de cada instante único
em que o instante ou só passa ou a passagem
mais que só consumir-se nos consuma
pois nem o tempo pode outro lugar
que não nos falte ou exceda onde nos une
II
Que sabes tu do inferno de onde estou
a telefonar-te agora? Mas também
como haverias tu de o saber se nem
eu sei já onde estou nem bem quem sou?
Porquê tentar de resto que o soubesses
em vez de te falar dessa promessa
nisso mostrando já melhor cabeça
que seria qualquer sítio onde estivesses
por acaso e eu chegasse por acaso
e depois sucedesse que em me vendo
quisesses cavalgar o tanto atraso
de quanto até então eu fora sendo?
E o rio cuja agonia ao fundo estancas
singraria as tuas mãos nas minhas ancas
miguel serras pereira
canal revista de literatura nr.3
verão de 1998
palha de abrantes
07 janeiro 2011
sophia de mello breyner andresen / através do teu coração
Através do teu coração
............................[ passou um barco
Que não pára de seguir sem
............................[ ti o seu caminho
sophia de mello breyner andresen
navegações
caminho
1996.
05 janeiro 2011
vitorino nemésio / poema
Uma tarde é tão pouco em nossa mão!
Os seus anéis deixados os pesamos
Com puros olhos; damos
Rigor ao que é recordação.
Depois a noite esculpe
Nossa extensão no sono.
A que erma catedral iremos nós de estátuas?
Sem um deus que nos culpe,
Tais os anéis de outono
Somos imagens fátuas.
vitorino nemésio
edoi lelia doura
antologia das vozes comunicantes
da poesia moderna portuguesa
assírio & alvim
1985
03 janeiro 2011
juan luís panero / como se fosse um poema de amor
Esta cidade tem hoje o teu rosto
e as gaivotas voam na orla dos teus olhos,
sob as nuvens cinzentas da tua fronte.
Ramos verdes de Abril agitam-se em teus lábios
e entre os teus dedos, brancas, surgem, surgem cúpulas
e torres.
Um castelo de sombras ergue-se em teu peito
e um avião passa lento, percorrendo o teu cabelo.
História do teu corpo, com ruas e com rostos
recantos de cansaço, paredes coloridas,
luz que vem e pára, atónita, a teus pés,
como um cão adormecido cujo nome ignoramos.
Esta cidade terá o teu rosto para sempre
e em sua cálida extensão conhecida,
pele a pele, até aos ossos, pedra a pedra nos anos,
o amor será distância e viverá sua morte.
Subitamente não há passado em sua língua
e em tua língua desmorona-se o presente
e tua língua arde e sua saliva queima
enquanto o rio enorme desagua
levando sob suas águas nossas vozes.
Esta cidade terá o teu nome para sempre,
escrevo-o como se fosse verdade,
como se minhas palavras fossem de pedra ou aço,
como se nada tivesse jamais de desmenti-las.
Numa noite qualquer, numa morna manhã
de uma primavera chuvosa e de tormentas,
com cinismo e cansaço, mas também um momento
com aquela ilusão que tiveram outrora
e um calor vencido que alimenta ainda sua pele,
frente ao esquecimento dois seres abraçaram a vida.
Com tristeza mais suave, oh que melancolia,
junto ao húmido parque suas duas sombras tremeram
«esta cidade terá o teu nome para sempre»
e ouviram-se distantes anunciar seu adeus.
(Lisboa 1969)
juan luís panero
antologia da poesia espanhola contemporânea
tradução de josé bento
assírio & alvim
1985