13 abril 2022

louise glück / prisma

 
 
13
 
Chuva de Primavera, depois uma noite de Verão.
Uma voz de homem, depois uma voz de mulher.
 
Crescias, eras fulminada por um raio.
Quando abrias os olhos, estavas ligada para sempre ao teu verdadeiro
          amor.
 
Só acontecia uma vez. Depois tratavam de ti,
a tua história acabava.
 
Acontecia uma vez. Ser fulminada era como ser vacinada,
ficavas imune para o resto da vida,
ficavas ao abrigo de tudo.
 
A menos que o choque não fosse suficientemente profundo.
Então não ficavas vacinada, mas viciada.
 
 
 
louise glück
averno
tradução de inês dias
relógio d´água
2020




12 abril 2022

emanuel jorge botelho / versos do desconsolo

  
 
                  para Stig Dagerman
 
 
 
fiquei com pouco tempo
para dar à claridade,
e as abelhas já não vêm
pôr mel dentro das rosas.
 
às vezes, a minha sombra
é um pedaço de risco,
qualquer coisa desavinda
a que o Sol quer dar sustento.
 
quem disse que a memória
é sempre muito antiga?
 
quem falou de uma aranha
para tecer a eternidade?
 
                         Outubro de 2013
 
 
 
emanuel jorge botelho
telhados de vidro n.º 19 . maio . 2014
averno
2014





 
 
 
 

11 abril 2022

sonnet mondal / vivendo memórias

 
 
O comprimento desta noite
parece mais longo do que a minha vida.
 
Ninguém sabe o que está dentro
e ninguém anseia por isso.
 
Todas as minhas experiências estão presas
 
Os seus nascimentos
foram carimbados pela dependência
como as trepadeiras
agarrando-se a uma antiga árvore despenteada
que alugou as suas folhas
aos incansáveis chilreares da experiência.
 
Eu sinto-me tão calmo, mapeio coisas para esquecer
Mas os pássaros do meu passado estão inquietos.
 
O sono está em toda a parte, excepto nas minhas memórias.
 
 
 
sonnet mondal
nervo/1
colectivo de poesia
janeiro/abril 2018
trad. de sérgio ninguém




 

10 abril 2022

arancha nogueira / a casa estralou

 
 
a casa estralou
mil cores azuis.
e agora os cachiños como pedazos de metacrilato
ou um universo roto.
 
ti descansabas nalguns recunchos
como a cociña
ou unha cadeira vella que conserva o cheiro.
 
as lâmpadas están acesas
as miñas mans, espidas.
 
 
 
arancha nogueira
o único lugar onde ficar inmóbil
editora urutau
2018




 

09 abril 2022

armando pinheiro / sobejos

 
 
As vitórias completas são bem raras:
Quase sempre há o reverso da medalha,
E aquilo que se ganha são aparas
Que sobram dos despojos da batalha…
 
 
 
armando pinheiro
espelho
editorial inova
1978
 



08 abril 2022

antónio dacosta / nesse jardim onde pousais

 


 
Nesse jardim onde pousais
Pousei eu
 
Os sinos soavam pesados
Na limpidez da tarde
E havia nos eucaliptos
Uma memória antiga
Um antigo cheiro
 
Passavam as raparigas
Que sabia não serem minhas
 
Doía-me o destino
A sua voz vinda de longe
O seu dedo apontado a mim
 
Elas sabiam
 
 
 
antónio dacosta
a cal dos muros
assírio & alvim
1994









07 abril 2022

ana paula inácio / querida sophia

 
 
Afinal as mónicas continuam
são as de sempre.
Fazem psicanálise e ioga,
cabeleireiro aos sábados e depilação 2 vezes por mês.
Não têm filhos mas adoptam-nos
como dão guarda aos cães
têm-nos de toda a qualidade
e para qualquer situação:
de cego para quando acordam cedo
e o excesso de luz as perturba;
da pradaria se pretendem preciosidades
raridades escondidas;
de água quando temerariamente mergulham
Quelques centimètres plus fond;
Briard quando precisam de inteligentes
e corajosos ou de pelagem abundante e
algo ondulado como os define
o dicionário Houaiss;
e finalmente de guarda ou de
fila não venha a coisa tornar-se pior.
Por vezes, estes últimos, podem tornar-se pegajosos,
inoportunos, indesejáveis
pelo que recebem o nome de miúdo ou
tinhoso, como o do rabo comprido, o
que também as enfeitiça
por fugir à norma, ao vulgo, ao
tremoço.
São sempre as mónicas
e quando falam ao telemóvel
usam uma voz recortada
como as mitenes da avó
e nunca amanham peixe
ou se amanham é para utilizar
as escamas em quadros florais
dispostos corredor acima.
Ao peixe comem-no cru,
para experimentar outras culturas.
 
 
 
ana paula inácio
2010-2011
averno
2011




06 abril 2022

alexandre nave / a dor é um abraço que afoga

 
 
5
 
A roupa estendida a desfeitear rapariga
as mãos delas prendidas nas outras
os olhos em tanques de água,
 
os dedos frios alongados no pátio,
 
saem para a praça vestidas no céu
que vela os mortos, os cabelos
entrelaçados nos beirais da chuva
 
a roupa seca balançada nos olhos
 
 
 
alexandre nave
columbários & sangradouros
quasi
2003




05 abril 2022

antónio franco alexandre / (trânsito)

 
 
Trabalhador precário, vou-me vestir de nómada
por ser mais alta estirpe e rima cómoda
para assim cantarolar:
 
os pedaços de terra todos têm
o seu pastor e ovelhas a guardar
e é pequena a clareira onde parava
o profeta a ruminar
 
regresso agora se posso
se há casa chão regressar
à cidade fiel é que pertenço
a de todos por igual
 
essa imagem hoje te envio
dos Pirenéus num postal
altas montanhas de neve
e paredes de cristal
 
vais-te rir da rima pobre
mas é pobre o que hoje sou
ali no vale é que fica
o riso bom de ficar
 
nesta fronteira fui homem
contigo me conheci
hoje volto ao calendário:
na noite branca abrigado
a ti só regressarei.
 
 
 
antónio franco alexandre
poemas
carrocel
assírio & alvim
2021




 

04 abril 2022

rui diniz / no sul

 
 
No inverno, em Sines, eu podia compor, na solidão
da casa, um súbito esquecimento. Falava de
antónia, lendo os poemas de eugénio e compondo
nos olhos de um castanho nocturno o ágil brilho
do amor. Por vezes ela recordava. Mas eu, a pouco e
pouco, fui até perdendo o significado de muitas das
palavras e simplifiquei assim toda a minha vida.
 
Eu passava agora tardes numa praia afastada, con-
templando o mar cuja áspera agitação
me surpreendia algumas vezes. Bebia à tarde, cansado
dos violentos sepulcros esboçados pelo crepúsculo.
E havia alturas em que ouvia um disco de vivaldi,
um adágio de ellington.
 
 
 
rui diniz
ossos de sépia
noemas
língua morta
2022




03 abril 2022

vergílio ferreira / ir ver o mar

 
 
179 – Ir ver o mar. Vê-lo de vez em quando e sempre com a mesma fascinação. Que é que vem dele para assim nos fascinar? A sua força imensa diante da nossa pequenez. O seu mistério visível e inquietante porque é o invisível da sua visibilidade. O irrisório da sua absurda convulsão e o aceno indistinto que vem de trás do horizonte e não sabemos o que é. O aroma a espaço, uma memória confusa de aventura, o sinal presente da sua infinitude ausente, a dilatação de nós a um poder imenso, um certo conluio com Deus.
 
 
 
vergílio ferreira
pensar
bertrand editora
2004




02 abril 2022

mário dionísio / se pudéssemos dizer até breve

 
 
43.
Se pudéssemos dizer até breve
quando nos separamos
 
Se pudéssemos partir claro está
que ninguém aqui está sempre perto sempre pronto
para agarrar a palavra
 
Se não houvesse sempre esse lobo atrás da parede
da nossa casa
 
Se prosseguir
não fosse a lei do tempo de paz  não é de paz
que a gente habita
 
 
mário dionísio
poesia completa
le feu qui dort (1967)
versão portuguesa de regina guimarães
imprensa nacional-casa da moeda
2016




01 abril 2022

roger wolfe / há gente

 
 
Há gente que acredita que está viva
porque lê jornais e faz amor
com a mulher duas vezes por ano, ou por mês
ou por semana,
e toma café com os amigos
e sonha pertencer a alguma máfia.
Há gente que acredita que está viva
porque se levanta todos os ias às seis
da madrugada, para se arrastar para o trabalho,
e fuma um cigarro
e comenta o jogo de ontem
ou o último escândalo político
com os colegas. Há gente
que acredita que está viva porque tem um carro,
um apartamento e duas dúzias
de camisas e uma firme opinião
acerca de quem deveria governar este país.
há gente que acredita que está viva
porque vai tirando cursos por correspondência,
acorre a carimbar a declaração de desemprego,
chuta pr´á veia ou snifa coca ou sai para tomar
um copo ou levar no cu ao fim-de-semana,
vai ao cinema, liga a televisão,
fala ao telefone ou abre uma nova conta bancária.
Há gente que por estas coisas e algumas outras,
– quaisquer umas que queiram –
acredita que está viva e, o que é pior:
que tem algum direito à vida.
 
 
 
roger wolfe
fazer o trabalho sujo
tradução de luís pedroso
língua morta
2020