05 setembro 2021

antónio osório / o tempo no baloiço pendulava

 
 
O tempo no baloiço pendulava
era infindo, dependente, meu.
Sob a latada o tempo eu conduzia,
ele voava segundo a segundo,
rebanho, sem poeira, desfilava.
 
Quase tocava nos cachos de uva.
Outro tempo infiltrava-se nos bagos,
Chamava pardais, abelhas, cestos vindimos,
e embrandecia, adoçava a sua queda.
 
 
 
 
antónio osório
a ignorância da morte
editorial presença
1982

 




04 setembro 2021

manuel cintra / com o verão

 

                                                                                                                                                                                                                        (com o verão)
 


 
Ali mesmo onde o salitre ano após ano vai beijando o estuque em desejos redondos de espuma seca. Ali onde num segundo entre parêntesis, dois lábios mais quentes do que o ar ambiente se tocam quase sem som, num até logo que podia ser escondido em avenidas de pétalas e fica feito receptáculo, desventrando a rua.
 
A rua, essa carne sulcada de rodas e vestida de janelas, que atravessa por ano tantas estações como qualquer mulher, articula-se rodeando os meus pés de olhares cúmplice, cheios de sola e de varão.
 
Beber o brilho súbito do beijo dos outros. Sentir a ausência de gosto na ausência do beijo que os outros não se dão. Receber a alegria que os tons de luz procuram em cada puxador de porta. A forma opaca e dura de tantas mãos segurando chávenas de café escuro atrás de vidros atrás de horas dentro de mãos.
 
Ia-se dizer uma piada, sente-se o eco, não se chega a rir.
 
(vejo de longe o teu olho pintado. As tuas palavras que entram na tarde, trocam mãos, constroem minutos com casitas de som e outras de silêncio. Depois tocas objectos com ondas nas sobrancelhas e fogem-te os olhos para a luz. Nos teus passos certos, alguma coisa que treme e tornas a segurar, como um volante pequeno.)
 
Enquanto vou contando uma história diferente em cada rosa vermelha. Adquirindo um tanto de optimismo, um tanto de azedume, em doses pouco lógicas, sempre antes de uma rosa e depois de outra.
 
Na música, os meus olhos dão corridas de braços abertos enchendo o chão de passos de todos os formatos, pernas sustendo corpos que seguram olhos lançam corridas e depois se esquecem de lançar. Um riso tímido corta o ar de queima-me. Crianças de pouco tamanho organizam explorações a canteiros e tocam e retocam a terra juntando palmas de mãos.
 
 



manuel cintra
do lado de dentro
editorial presença
1981





03 setembro 2021

paul éluard / irmãs de esperança

 
 
Irmãs de esperança ó mulheres corajosas
Que contra a morte tendes feito um pacto
O de unir as virtudes do amor
 
Irmãs sobreviventes
Que jogais vossa vida
P’ra que a vida triunfe
 
Aproxima-se o dia ó irmãs de grandeza
Para rir das palavras guerra dor e miséria
E do que foi a dor já nada restará
 
Cada rosto terá seu direito à carícia.
 
 
 
paul éluard
poemas políticos
trad. carlos grifo
editorial presença
1971





02 setembro 2021

antónio ramos rosa / como se fora aqui

 
 
Como se fora aqui aqui começo
Aqui procuro o gesto de encontrar
onde a procura é febre jovem pressa
a cidade se inclina por um tornozelo lúcido
rodopia a palavra que num lance se espera
o pulso livre martela a luz das têmporas
uma lâmina de água ondula no silêncio
a cidade transpira num corpo desnudado
por uma fenda vivíssima o espaço se ilumina
o poema atravessa o vidro do instante
 
Aqui encontro a chama adormecida errante
 
Como se fora aqui aqui começo
 
 
 
antónio ramos rosa
matéria de amor
editorial presença
1985





01 setembro 2021

joaquim manuel magalhães / cortei uma folha doutra terra

 
 
Cortei uma folha doutra terra
com que nas noites sem frio saíamos a passear.
Ouvi a tua voz ao telefone, rouca,
no susto de mentir, e foi então
que subiu o perfume da flor
ao arame enferrujado dos sentimentos,
os sentimentos à poeira indecifrável
com que te dizia “já és de novo
a ilusão”, o que não amava,
o que sentado ao carro no arrabalde
me dizia, encolhendo os ombros,
“tudo há-de passar”. E passou.
A porta fechou-se, o som do motor
perdeu-se no ruído monstruoso da avenida.
 
 

joaquim manuel magalhães
os poços
uma luz com um toldo vermelho
editorial presença
1990





31 agosto 2021

raymond carver / pelo menos

 
 
Quero levantar-me cedo uma manhã mais,
antes do nascer do sol. Antes mesmo dos pássaros.
Quero atirar água fria à minha cara
e estar à minha mesa de trabalho
quando o céu clarear e o fumo
começar a sair das chaminés
das outras casas.
Quero ver as ondas a quebrarem-se
nesta praia rochosa, não ouvi-las apenas
a bater, como fiz toda a noite durante o meu sono.
Quero ver de novo os navios
que passam pelo estreito vindos de todos
os países marítimos do mundo –
os cargueiros velhos e sujos movendo-se vagarosamente
e os novos e rápidos navios de carga
pintados, sob o sol, de todas as cores
que cortam a água à medida que avançam.
Quero manter-me de olhos bem abertos por eles.
E pelos pequenos barcos que manobram
na água entre os navios
e o porto, junto ao farol.
Quero vê-los a receberem um homem que sai do navio
e a pôr outro lá em cima, a bordo.
Quero passar o dia a ver isto acontecer
e tirar as minhas próprias conclusões.
Detesto parecer ganancioso – e já tenho tanto
pelo qual devo ficar agradecido.
Mas quero levantar-me cedo mais uma manhã, pelo menos.
E ir para o meu lugar com algum café, e esperar.
Esperar, apenas, para ver o que irá acontecer.
 
 
 
raymond carver
o universo está pintado à mão
uma antologia fanática
por luís filipe parrado
língua morta
2020






30 agosto 2021

francis picabia / nadar

 
 
Sou a miragem acima da literatura
dos absintos burgueses.
Terna suposição de mata-borrão alcoólico,
autor fantasma dum trabalho novo!
A estrada é discretamente selvagem,
entrecortada de iluminações.
A morte, ocasião única
de esplendores invisíveis,
está deitada numa cama de descanso.
Como um poeta ímpar,
Sou o autor do mau comportamento.
 


 
francis picabia
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021





29 agosto 2021

yvette k. centeno / mediterrâneo

 
 
 
Mais um naufrágio,
quase de mil pessoas
querendo escapar à morte,
morrendo ali afogadas
nas águas traiçoeiras:
tanto corpo
para tão pouco peixe
quem os comer,
nas esplanadas felizes,
não morrerá do veneno
de tanta dor
tão negra?
 
 
 
yvette k. centeno
poemas com endereço (2010-2018)
entre silêncios
poesia 1961-2018
glaciar
2019





 

28 agosto 2021

maria teresa horta / os lugares

 
 
Passei pelos lugares
que inventámos
 
o mar
o gesto
o parapeito
 
mas não encontrei
o sol
nem o recanto em seu espanto
 
nem o motivo
o vitral
nem a chama que colhemos
 
Apenas as estradas me indicavam
a rota das mãos que as não tocavam
 
 
 
 
maria teresa horta
poesia reunida
minha senhora de mim
dom quixote
2009






 

27 agosto 2021

fátima maldonado / o verão

 
 
Na luz amarela
que Raul Brandão
ousou contemplar
a máquina debulha trigo
na usura do grão, no ruído do pó,
ouvem-se queixas na ordália de espigas.
O gilvaz na cara por pragana
a pele morena cava trincheiras
no coração fugaz das raparigas,
safões sublinham elegância
na bainha dos ossos,
voraz beleza contamina ar
adensa a corrente da voz
tresmalha a fénix no rebanho do sangue.
Máscaras velam olhos,
protecção brutal dos que mergulham
perante tanto sol.
O suor imuniza a combustão,
salitre rasga, conserva, cauteriza,
jovens defuntos
no vinho da mastaba.
O Alentejo invade os enxames de cisco
de luz maligna,
a tarde vai-se desagregando
como um vitral perfeito,
o pólen fertiliza,
mirtilos do desejo
irrompem na lapela dos rapazes cansados
que extenuam os pés e acutilam na fronte
o tímpano da dor.
 
 
 
fátima maldonado
sem rasto
os frescos
averno
2021





 

26 agosto 2021

louise glück / um dia quente

 
 
Hoje, o sol brilhava,
por isso a minha vizinha lavou as suas camisas de noite no rio –
regressa a casa com tudo dobrado numa cesta,
radiante, como se tivesse acabado de ganhar
mais dez anos de vida. A limpeza fá-la feliz –
diz-nos que podemos recomeçar tudo outra vez,
não precisamos de ficar presos aos erros do passado.
 
Uma boa vizinha – cada uma de nós deixa a outra
entregue à sua intimidade. Ainda agora
ela se pôs a cantar sozinha, pendurando a roupa lavada e húmida no
    arame.
 
Pouco a pouco, dias como este
irão parecer normais. Mas o Inverno foi duro:
as noites a começarem cedo, o amanhecer escuro,
com uma chuva cinzenta e persistente – meses disso,
e depois a neve, como silêncio caindo do céu,
obliterando árvores e jardins.
 
Hoje, tudo isso já vai longe para nós.
Os pássaros estão de volta, a chilrear em torno das sementes.
A neve derreteu; as árvores de fruto estão carregadas de nova e
    aveludada colheita.
Uns quantos casais até passeiam pelo prado, fazendo as promessas
    que são as deles.
 
Deixamo-nos ficar ao sol e o sol cura-nos.
Não tem pressa de ir embora. Permanece suspenso sobre nós, imóvel,
como um actor satisfeito com o seu acolhimento.
 
A minha vizinha fica em silêncio por instantes,
a olhar fixamente para a montanha, a ouvir os pássaros.
 
Tantas peças de roupa, de onde terão vindo?
E a minha vizinha ainda está lá fora,
a pendurá-las no arame, como se a cesta jamais ficasse vazia –
 
Continua cheia, nada acabou ainda,
embora o Sol comece a deslocar-se mais abaixo do céu:
ainda não é Verão, lembremo-nos, é só o princípio da Primavera;
o calor ainda não veio para ficar, e o frio aproxima-se –
 
Ela sente isso, como se a última peça de roupa branca congelasse nas
    suas mãos.
Ela olha para as mãos – vê como estão velhas. Não é o princípio, é
    o fim.
E os adultos, esses, já morreram todos.
Só ficaram as crianças, sozinhas, a envelhecer.
 
 
 
louise glück
uma vida de aldeia
tradução de frederico pedreira
relógio d´água
2021




25 agosto 2021

luís miguel nava / o azul do mar

 
 
O azul do mar desprende-se da água.
Dos ossos que cravei na realidade, onde pensava
que o mar se sustivesse e da qual sempre
supus também que o mar se alimentasse (de tal forma
por vezes o sentimos
encher-se de realismo), nem um só, mesmo pintado,
subsiste agora
que o tempo tudo apaga à minha volta.
 
 
luís miguel nava
o céu sob as entranhas
poesia
assírio & alvim
2020








24 agosto 2021

luiza neto jorge / recanto 13

 
 
Minha irmã é que nasceu a falar
de um derramamento colossal
da solidão.
 
As mulheres, é espesso perfume lembrá-lo,
têm ângulos ausentes no que vêem e no que falam e nas ocultas
nebulosas do seu copo
o amante adivinha como um homem traído.
 
Assim assim mesmo: nessa penumbra de metal candente
anseia-se, decai a ansiedade
 
e a mulher (Ila, irmã de Ilo o mundo, a minha irmã),
que é repouso vasto enfurecido
corre a apanhá-los.
ao espelho, à flor,
da cintura irrompendo como de um jardim
para uma espécie de corpo inenarrável.
 
 
 
luiza  neto jorge
dezanove recantos
1970