19 julho 2021

francesca cricelli / botão



 
Minha mãe insistia que pregasse o botão solto à camisa de linho.
Que removesse o fio que já não o prendia,
que refizesse o alinhavo entre as fissuras.
 
Que o mesmo se segurasse bem sobre o tecido,
para não ter de prega-lo quando enfim caísse,
poderia perdê-lo pelas ruas, sem notar.
 
Mãe que ensina a ver o frágil antes da quebradura.
Antes das coisas se perderam pelas ruas.
Antes do peito se expor à intempérie do tempo e do olhar.
 
Muito mais do que costura,
mãe, olhar atento às coisas por um fio.
 
Tê-las nos dedos com cuidado e paciência.
Refazer o caminho do fio entre os furos.
 
 
 
francesca cricelli
eufeme
magazine de poesia / 20
julho / setembro 2021
edições eufeme
2021






 


 

18 julho 2021

josé gomes ferreira / vivam apenas

 
 
Vivam apenas.
 
Sejam bons como o sol.
Livres como o vento.
Naturais como as fontes.
 
Imitem as árvores dos caminhos
que dão flores e frutos
sem complicações.
 
Mas não queiram convencer os cardos
a transformar os espinhos
em rosas e canções.
 
E principalmente não pensem na Morte.
Não sofram por causa dos cadáveres
que só são belos
quando se desenham na terra em flores.
 
Vivam, apenas.
A Morte é para os mortos!
 
 
josé gomes ferreira
comício 1934
poesia I
portugália
1972





17 julho 2021

maria alberta menéres / aqui posso medir tudo o que digo

 
 
Aqui posso medir tudo o que digo
pelo eco em montanhas indomáveis:
toco a crosta da terra e de repente
logo um som me anuncia em claridade.
Ouvir fica para lá de qualquer voz
junto à fonte mais triste onde se guarde
uma pequena lágrima que esqueça
o que de mim se lembra em tenra idade
 
 
 
maria alberta menéres
o jogo dos silêncios
poesia completa
porto editora
2020
 




16 julho 2021

pierre reverdy / luz

 


 

Meio-dia
Brilha o espelho
O sol na mão
            Uma mulher contempla
os seus olhos
                       o seu tormento
Dissipa-se o muro em frente
O vento cria rugas nas cortinas
                       Algo estremece
                    A imagem desvanece-se
                        Passa uma nuvem
                                 A chuva
 
 
 
pierre reverdy
transversões
poemas reescritos em português
por zetho cunha gonçalves
contracapa
2021

 





15 julho 2021

mário dionísio / estarei sempre lá fora

 
 
O mundo que vem da tua ternura inatingível
será um mundo sempre fraco.
 
Nem a tua voz diferente,
nem a tua clara gargalhada,
nem a tua pele, dura e tenra, macia, macia,
poderão afastar-me do mundo a esfacelar-se no nevoeiro universal.
Nem da tua alegria poderá apagar em mim
a angústia dos outros – fim e princípio de tudo quanto sou.
Nada poderá distrair-me
Dos gritos lá de fora enchendo as ruas de braços e de bocas dolorosas.
Nada poderá afugentar-me.
 
As tuas mãos serão sempre impotentes para reter-me
no caudal correndo sempre.
Fraca sempre a tua carne para embriagar-me inteiramente.
 
Porque, por mais que me sintas na sensação das formas
dentro de ti no isolamento de tudo,
eu estarei sempre lá fora,
rugindo e batalhando,
vivendo com os outros.
 
 
mário dionísio
poesia completa
poemas (1936-1938)
imprensa nacional-casa da moeda
2016






14 julho 2021

jorge de sousa braga / grande porto: flashes

  
O arco-íris que ontem se desenhava sobre o rio apresentava uma cor a menos: o verde. Após uma rápida investigação resolveu-se o mistério. Uma vaca fora surpreendida a pastar no arco-íris.
 
De manhã um som aterrador acordou a cidade. Era um Boeing que ensaiava com a cria – um biplano implume – as primeiras acrobacias aéreas.
 
Um homem passeara-se nu pela cidade com uma rosa na mão. Inquiridas pelo juiz as testemunhas revelaram-se incapazes de identificar a cor da rosa.
 
Funcionários públicos começaram à hora do almoço a invadir os jardins da cidade. As primeiras vítimas da sua voracidade foram as rosas. Pequenas escaramuças têm-se sucedido agora na disputa de um simples amor perfeito. Reunido de emergência o executivo camarário decidiu aumentar substancialmente as verbas destinadas aos jardins.
 
Na reunião da comissão de moradores de um dos bairros da zona oriental da cidade foi votada por unanimidade a substituição dos candeeiros de iluminação pública por pirilampos.
 
 
 
 
 
jorge de sousa braga
hífen 7 abril, 1992
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992




 

13 julho 2021

mark young / uma ficcione para jorge luís borges

 
 
As lombadas
dos livros
mais velhos nas
bibliotecas de
Buenos Aires
& de Babel
estão gastas
pela quantidade
de vezes
que Jorge Luís Borges
andou
pelas estantes
e leu
os títulos
 
 
 
mark young
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




12 julho 2021

gemma gorga / a identidade

 



 
À noite, entre as tuas mãos, sou dócil
como uma gota de mercúrio. quero
rolar e quebrar-me em mil espelhos, mil
pequenas esferas de água densa onde
te possa derramar enquanto contemplo o teu
rosto, e te interrogo desde mim.
 
 
 
gemma gorga
instrumentos ópticos (2005)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021






11 julho 2021

ângelo de lima / não tinha

 
 
15.
 
                                    Fria fria
                                    Como o meu Amor Primeiro
 
                                    E. de V.

 
 

Não tinha esse perfume, dos Narcisos!...
Nem o calor fervente dos Abraços!...
 
Aquela, a quem um dia abri os braços…
– Que me encantava a alma de sorrisos!...
 
– Vi seus olhos, então!... – os lagos lisos
Não são mais cristalinos… nem mais frios!...
 
– Pobres Almas de Moços… – Balbucios
E Inocentes! – e Ínscios!... – E Indecisos!...
 



ângelo de lima
poesias completas
assírio & alvim
2003





10 julho 2021

sebastião alba / em cada mão

 
 
EM CADA MÃO, A PEDRA COM QUE INSULTO
o meu sorriso a demolir, no espelho
dos lavabos do bar. Oiço o tumulto
na sala. Aos 39, estou um velho,
 
dizem. Ora bem, concedo – seus filhos
da puta Largo as pedras, já cadentes
consomem-se e não chegam aos ladrilhos.
Agora, isco o sorriso e dou-lhes luta
 
ao balcão. Estes bêbados vigiam,
voantes, aquilinos sobre a minha
vida, a imagem que mais lhes dá no goto,
 
mas se enreda em quem sou. E desconfiam…
Então, erguendo o copo, assomo à imagem,
com a fralda de fora e um pé boto.
 
 
 
sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996
 





09 julho 2021

odysséas elytis / clima da ausência

 



 

I
Todas as nuvens da terra se confessam
E um penar meu ocupou-lhe o lugar
 
E quando nos cabelos entristeceu
Impenitente a mão
 
Atei-me num nó de dor.
 
 
II
A hora entardeceu esquecida
Sem memória
Com a sua árvore muda
Para os lados do mar
Entardeceu esquecida
Sem bater de asas
Com a face imóvel
Para os lados do mar
Entardeceu
Sem amor
A boca inflexível
Para os lados do mar
 
E eu – mergulhado na Serenidade que seduzi.
 
 
III
Tarde
E a sua imperial solidão
E a ternura dos seus ventos
E o seu arriscado esplendor
Nada que chegue Nada
Que parta
 
Todas as faces nuas
 
E por sentimento um cristal.
 
 
                                                         De Orientações, 1940
 


 
odysséas elytis
a grécia de que falas …
antologia de poetas gregos modernos
trad. manuel resende
língua morta
2021







08 julho 2021

luís filipe parrado / depois do amor

 
 
De mais nada posso falar:
só deste cheiro a fruta espessa, crua,
que de ti me fica nos dedos,
na polpa, entre a pele e as unhas,
mesmo depois do sabonete e da água corrente.
 
 
luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019

 






07 julho 2021

robert desnos / sonhei tanto contigo

 
 
 
Sonhei tanto contigo que vais perdendo realidade.
 
Irei ainda a tempo de alcançar esse corpo vivo e de beijar nessa boca o nascimento da voz que me é querida?
 
Sonhei tanto contigo que os braços habituados, sempre que abraçam a tua sombra a cruzarem-se-me sobre o peito, talvez nunca mais encaixem nos contornos do teu corpo.
 
E, perante a aparência real do que me assombra e me governa, desde há muitos dias e anos, talvez eu me venha também a tornar sobra.
 
Ó balanças sentimentais!
 
Sonhei tanto contigo que talvez já não vá a tempo de acordar. Durmo de pé, com o corpo exposto a todas as aparências da via e do amor, e tu, a única de todas que hoje conta para mim, posso menos tocar a tua testa e os teus lábios do que os primeiros lábios e a primeira testa que por aí apareçam.
 
Sonhei tanto contigo, caminhei tanto, falei tanto, dormi tanto com o teu fantasma, que só me resta talvez, e todavia, ser fantasma entre fantasmas, e cem vezes mais sombra do que a sombra que passeia e passeará alegremente pelo relógio de sol da tua vida.
 
 
 
robert desnos
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021