13 julho 2021

mark young / uma ficcione para jorge luís borges

 
 
As lombadas
dos livros
mais velhos nas
bibliotecas de
Buenos Aires
& de Babel
estão gastas
pela quantidade
de vezes
que Jorge Luís Borges
andou
pelas estantes
e leu
os títulos
 
 
 
mark young
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




12 julho 2021

gemma gorga / a identidade

 



 
À noite, entre as tuas mãos, sou dócil
como uma gota de mercúrio. quero
rolar e quebrar-me em mil espelhos, mil
pequenas esferas de água densa onde
te possa derramar enquanto contemplo o teu
rosto, e te interrogo desde mim.
 
 
 
gemma gorga
instrumentos ópticos (2005)
o anjo da chuva
trad. miguel filipe mochila
do lado esquerdo
2021






11 julho 2021

ângelo de lima / não tinha

 
 
15.
 
                                    Fria fria
                                    Como o meu Amor Primeiro
 
                                    E. de V.

 
 

Não tinha esse perfume, dos Narcisos!...
Nem o calor fervente dos Abraços!...
 
Aquela, a quem um dia abri os braços…
– Que me encantava a alma de sorrisos!...
 
– Vi seus olhos, então!... – os lagos lisos
Não são mais cristalinos… nem mais frios!...
 
– Pobres Almas de Moços… – Balbucios
E Inocentes! – e Ínscios!... – E Indecisos!...
 



ângelo de lima
poesias completas
assírio & alvim
2003





10 julho 2021

sebastião alba / em cada mão

 
 
EM CADA MÃO, A PEDRA COM QUE INSULTO
o meu sorriso a demolir, no espelho
dos lavabos do bar. Oiço o tumulto
na sala. Aos 39, estou um velho,
 
dizem. Ora bem, concedo – seus filhos
da puta Largo as pedras, já cadentes
consomem-se e não chegam aos ladrilhos.
Agora, isco o sorriso e dou-lhes luta
 
ao balcão. Estes bêbados vigiam,
voantes, aquilinos sobre a minha
vida, a imagem que mais lhes dá no goto,
 
mas se enreda em quem sou. E desconfiam…
Então, erguendo o copo, assomo à imagem,
com a fralda de fora e um pé boto.
 
 
 
sebastião alba
a noite dividida
assírio & alvim
1996
 





09 julho 2021

odysséas elytis / clima da ausência

 



 

I
Todas as nuvens da terra se confessam
E um penar meu ocupou-lhe o lugar
 
E quando nos cabelos entristeceu
Impenitente a mão
 
Atei-me num nó de dor.
 
 
II
A hora entardeceu esquecida
Sem memória
Com a sua árvore muda
Para os lados do mar
Entardeceu esquecida
Sem bater de asas
Com a face imóvel
Para os lados do mar
Entardeceu
Sem amor
A boca inflexível
Para os lados do mar
 
E eu – mergulhado na Serenidade que seduzi.
 
 
III
Tarde
E a sua imperial solidão
E a ternura dos seus ventos
E o seu arriscado esplendor
Nada que chegue Nada
Que parta
 
Todas as faces nuas
 
E por sentimento um cristal.
 
 
                                                         De Orientações, 1940
 


 
odysséas elytis
a grécia de que falas …
antologia de poetas gregos modernos
trad. manuel resende
língua morta
2021







08 julho 2021

luís filipe parrado / depois do amor

 
 
De mais nada posso falar:
só deste cheiro a fruta espessa, crua,
que de ti me fica nos dedos,
na polpa, entre a pele e as unhas,
mesmo depois do sabonete e da água corrente.
 
 
luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019

 






07 julho 2021

robert desnos / sonhei tanto contigo

 
 
 
Sonhei tanto contigo que vais perdendo realidade.
 
Irei ainda a tempo de alcançar esse corpo vivo e de beijar nessa boca o nascimento da voz que me é querida?
 
Sonhei tanto contigo que os braços habituados, sempre que abraçam a tua sombra a cruzarem-se-me sobre o peito, talvez nunca mais encaixem nos contornos do teu corpo.
 
E, perante a aparência real do que me assombra e me governa, desde há muitos dias e anos, talvez eu me venha também a tornar sobra.
 
Ó balanças sentimentais!
 
Sonhei tanto contigo que talvez já não vá a tempo de acordar. Durmo de pé, com o corpo exposto a todas as aparências da via e do amor, e tu, a única de todas que hoje conta para mim, posso menos tocar a tua testa e os teus lábios do que os primeiros lábios e a primeira testa que por aí apareçam.
 
Sonhei tanto contigo, caminhei tanto, falei tanto, dormi tanto com o teu fantasma, que só me resta talvez, e todavia, ser fantasma entre fantasmas, e cem vezes mais sombra do que a sombra que passeia e passeará alegremente pelo relógio de sol da tua vida.
 
 
 
robert desnos
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




 
 
 
 
 

06 julho 2021

leopoldo maría panero / o louco olhando da porta do jardim

 
 
Homem normal que por um instante
cruzas a tua vida com a do espantalho
é bom que saibas que não foi por matar o pelicano
nem por coisa nenhuma que aqui jazo entre outros sepulcros
e que a nada senão ao acaso e a nenhuma vontade sagrada
de demónio ou de deus devo a minha ruína.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019






05 julho 2021

yorgos seferis / romance

 
 
XV
 
                                        Quid campo de plátanos opacissimus?
 
 
O sono envolveu-te, como uma árvore, com folhas verdes,
respiravas, como uma árvores, na luz tranquila,
olhei para a forma do teu rosto dentro da fonte diáfana;
pálpebras fechadas e os cílios riscavam a água.
Os meus dedos na erva macia, encontraram os teus
          dedos
prendi o teu pulso um momento
e senti noutro lugar a dor do teu coração.
 
Debaixo do plátano, perto da água, entre os loureiros
o sono deslocava-te e despedaçava-te
em redor de mim, perto de mim, sem poder tocar-te
          inteira,
una com o teu silêncio;
vendo a tua sombra crescer e diminuir,
perder-se noutras sombras, dentro do outro
mundo que te deixava e prendia.
 
A vida que nos deram para viver, vivemo-la.
Tem dó dos que esperam com tanta paciência
Perdidos entre os loureiros negros debaixo dos pesados
          plátanos
e dos que falam sós por cisternas e por poços
e se afogam dentro dos círculos da voz.
 
Tem dó do companheiro que partilhou a nossa privação
          e o suor
e afundou dentro do sol qual corvo além dos mármores,
sem esperança de disfrutar a nossa recompensa.
 
Dá-nos, fora do sono, a serenidade.
 
 
 
yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





 

04 julho 2021

adam zagajewski / os bárbaros

 
 
Nós é que éramos os bárbaros.
Pensando em nós é que vocês tremiam nos vossos palácios.
Era por estarem à nossa espera que o vosso coração batia desordenadamente.
Das nossas línguas é que vocês diziam:
talvez se componham só de consoantes,
de frufrus, sussurros e folhas secas.
Nós é que vivíamos nas florestas negras.
De nós é que tinha medo Ovídio em Tomi,
Nós é que adorávamos deuses com nomes
que vocês não conseguiam pronunciar.
Mas também nós conhecemos a solidão
e a angústia, e desejámos a poesia.
 
  
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017





03 julho 2021

tiago nené / este obscuro objecto do desejo

 
 
2.
Vi a tempestade na profundidade do espelho
no lusco-fusco do tempo.
Quantos despojos de um mar abriram mais que uma luz,
a meio de uma semiclaridade só uma febre avança.
 
Regressar ai início,
seguir pela linha onde o silêncio
é saliente e simples.
 
 
 
tiago nené
este osbcuro objecto  do desejo
guerra &  paz
2017




 


02 julho 2021

louise glück / matinas

 
 
O que é para ti o meu coração
se o partes tantas vezes,
como dedicado jardineiro estudando
a sua nova espécie? Experimenta
noutras coisas: como posso eu viver
em colónias, como gostarias, se me impões
uma quarentena de angústia, separando-me
dos membros saudáveis da
tua própria tribo: não fazes isto
com o jardim, não discriminas
a roa doente; deixa-la agitar as folhas
afáveis e infestadas no
rosto das outras rosas, e os minúsculos afídios
saltam de planta em planta, provando uma vez mais
que eu sou a mais irrelevante das tuas criaturas, depois
do próspero afídio e da rosa trepadeira. Pai,
tu que és a causa da minha solidão, alivia
pelo menos a minha culpa; levanta
o estigma do isolamento, a menos
que seja teu desígnio tornares-me
de novo e para sempre sã, tal como eu era
sã e plena na minha infância equivocada,
ou então antes, quando estava sob o coração de minha mãe
batendo leve, ou antes ainda,
em sonho, como um ser
primeiro que nunca morre.
 
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020





01 julho 2021

ana hatherly / 39 tisanas

 
17
 
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980