08 julho 2021

luís filipe parrado / depois do amor

 
 
De mais nada posso falar:
só deste cheiro a fruta espessa, crua,
que de ti me fica nos dedos,
na polpa, entre a pele e as unhas,
mesmo depois do sabonete e da água corrente.
 
 
luís filipe parrado
entre a carne e o osso
língua morta
2019

 






07 julho 2021

robert desnos / sonhei tanto contigo

 
 
 
Sonhei tanto contigo que vais perdendo realidade.
 
Irei ainda a tempo de alcançar esse corpo vivo e de beijar nessa boca o nascimento da voz que me é querida?
 
Sonhei tanto contigo que os braços habituados, sempre que abraçam a tua sombra a cruzarem-se-me sobre o peito, talvez nunca mais encaixem nos contornos do teu corpo.
 
E, perante a aparência real do que me assombra e me governa, desde há muitos dias e anos, talvez eu me venha também a tornar sobra.
 
Ó balanças sentimentais!
 
Sonhei tanto contigo que talvez já não vá a tempo de acordar. Durmo de pé, com o corpo exposto a todas as aparências da via e do amor, e tu, a única de todas que hoje conta para mim, posso menos tocar a tua testa e os teus lábios do que os primeiros lábios e a primeira testa que por aí apareçam.
 
Sonhei tanto contigo, caminhei tanto, falei tanto, dormi tanto com o teu fantasma, que só me resta talvez, e todavia, ser fantasma entre fantasmas, e cem vezes mais sombra do que a sombra que passeia e passeará alegremente pelo relógio de sol da tua vida.
 
 
 
robert desnos
sonhador definitivo e perpétua insónia
uma antologia de poemas
surrealistas escritos em língua francesa
trad. regina guimarães
contracapa
2021




 
 
 
 
 

06 julho 2021

leopoldo maría panero / o louco olhando da porta do jardim

 
 
Homem normal que por um instante
cruzas a tua vida com a do espantalho
é bom que saibas que não foi por matar o pelicano
nem por coisa nenhuma que aqui jazo entre outros sepulcros
e que a nada senão ao acaso e a nenhuma vontade sagrada
de demónio ou de deus devo a minha ruína.
 
 
 
leopoldo maría panero
a canção do croupier do mississípi e outros poemas
trad. jorge melícias
antígona
2019






05 julho 2021

yorgos seferis / romance

 
 
XV
 
                                        Quid campo de plátanos opacissimus?
 
 
O sono envolveu-te, como uma árvore, com folhas verdes,
respiravas, como uma árvores, na luz tranquila,
olhei para a forma do teu rosto dentro da fonte diáfana;
pálpebras fechadas e os cílios riscavam a água.
Os meus dedos na erva macia, encontraram os teus
          dedos
prendi o teu pulso um momento
e senti noutro lugar a dor do teu coração.
 
Debaixo do plátano, perto da água, entre os loureiros
o sono deslocava-te e despedaçava-te
em redor de mim, perto de mim, sem poder tocar-te
          inteira,
una com o teu silêncio;
vendo a tua sombra crescer e diminuir,
perder-se noutras sombras, dentro do outro
mundo que te deixava e prendia.
 
A vida que nos deram para viver, vivemo-la.
Tem dó dos que esperam com tanta paciência
Perdidos entre os loureiros negros debaixo dos pesados
          plátanos
e dos que falam sós por cisternas e por poços
e se afogam dentro dos círculos da voz.
 
Tem dó do companheiro que partilhou a nossa privação
          e o suor
e afundou dentro do sol qual corvo além dos mármores,
sem esperança de disfrutar a nossa recompensa.
 
Dá-nos, fora do sono, a serenidade.
 
 
 
yorgos seferis
romance
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





 

04 julho 2021

adam zagajewski / os bárbaros

 
 
Nós é que éramos os bárbaros.
Pensando em nós é que vocês tremiam nos vossos palácios.
Era por estarem à nossa espera que o vosso coração batia desordenadamente.
Das nossas línguas é que vocês diziam:
talvez se componham só de consoantes,
de frufrus, sussurros e folhas secas.
Nós é que vivíamos nas florestas negras.
De nós é que tinha medo Ovídio em Tomi,
Nós é que adorávamos deuses com nomes
que vocês não conseguiam pronunciar.
Mas também nós conhecemos a solidão
e a angústia, e desejámos a poesia.
 
  
 
adam zagajewski
sombras de sombras
trad. marco bruno
tinta-da-china
2017





03 julho 2021

tiago nené / este obscuro objecto do desejo

 
 
2.
Vi a tempestade na profundidade do espelho
no lusco-fusco do tempo.
Quantos despojos de um mar abriram mais que uma luz,
a meio de uma semiclaridade só uma febre avança.
 
Regressar ai início,
seguir pela linha onde o silêncio
é saliente e simples.
 
 
 
tiago nené
este osbcuro objecto  do desejo
guerra &  paz
2017




 


02 julho 2021

louise glück / matinas

 
 
O que é para ti o meu coração
se o partes tantas vezes,
como dedicado jardineiro estudando
a sua nova espécie? Experimenta
noutras coisas: como posso eu viver
em colónias, como gostarias, se me impões
uma quarentena de angústia, separando-me
dos membros saudáveis da
tua própria tribo: não fazes isto
com o jardim, não discriminas
a roa doente; deixa-la agitar as folhas
afáveis e infestadas no
rosto das outras rosas, e os minúsculos afídios
saltam de planta em planta, provando uma vez mais
que eu sou a mais irrelevante das tuas criaturas, depois
do próspero afídio e da rosa trepadeira. Pai,
tu que és a causa da minha solidão, alivia
pelo menos a minha culpa; levanta
o estigma do isolamento, a menos
que seja teu desígnio tornares-me
de novo e para sempre sã, tal como eu era
sã e plena na minha infância equivocada,
ou então antes, quando estava sob o coração de minha mãe
batendo leve, ou antes ainda,
em sonho, como um ser
primeiro que nunca morre.
 
 
 
 
louise glück
a íris selvagem
tradução de ana luísa amaral
relógio d´água
2020





01 julho 2021

ana hatherly / 39 tisanas

 
17
 
Era uma vez uma chave que vivia no bolso de um homem. Durante muito tempo desempenhou com honestidade o seu trabalho de abrir portas. Até que um dia descobriu que todo o seu trabalho tinha consistido sempre em abrir portas que já estavam abertas. Quando descobriu isso lançou-se corajosamente para fora do bolso. Caiu no chão. Ficou ali. Passa uma criança vê a chave e diz que coisa tão engraçada para fazer um carrinho.
 
 
 
ana hatherly
poesia
1958-1978
moraes editores
1980







30 junho 2021

mário-henrique leiria / esperar-te

 
 
esperar-te
esperar-te da mesma maneira solitária
com que se tem
saudades da paisagem numa vista
ficar incerto
– talvez desconhecido –
olhando as mãos vazias e inúteis
um cigarro somente
enquanto passam minúsculos animais
e o fumo te espera também
esperar
esperar apenas e não já esperar-te
esperar qualquer coisa
um rio que corra lentamente
um grande desastre de automóveis
o desmoronar da torre antiquíssima
um corpo que apareça de súbito
esperar
só por esperar
tanto pode ser que venhas
com que não venhas
que nunca venhas
depois
quando chegares
já eu parti.
 
 
 
mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018






 

29 junho 2021

steve klepetar / aula

 
 
Ela ensinou-me a apanhar chuva com a língua,
a saborear a cidade e as nuvens. Segurou a minha
mão e ensinou-me a ser pássaro, a deslizar
 
para um corpo de ossos vazios, a espreitar das copas
das árvores, a bicar, arranhar e voar. Ensinou-me
a sentir o vento como os seus dedos no meu cabelo,
 
a como não ter medo de saltar para a rebeldia
da sua voz, a música do seu corpo, mel
a pingar dos seus dedos como fios de ouro pegajosos.
 
 
 
steve klepetar
o filho da bebedora de café
trad. francisco josé craveiro de carvalho
edições eufeme
2018





28 junho 2021

jack gilbert / o segredo

 
 
Existe uma beleza fácil nas estátuas de bronze
resgatadas do oceano, mas há valor
no informe onde a nossa doce mente é criada.
A verdade é como uma pérola, disse Francis Bacon.
É bela à clara luz, mas o carbúnculo
é mais precioso pelo seu profundo rubor se mostrar melhor
a várias luzes. «Um pouco de mentira
sempre aumenta o prazer.» Quando os chineses faziam
um círculo de pedras no topo dos seus poços,
uma ficaria enviesada de modo que o círculo
parecesse mais redondo. Irregularidade é o segredo
da música e da voz da grande poesia.
Quando um homem recorda a beleza do seu amor perdido
é a parte imperfeita dela que mais relembra.
O Pártenon arrasado é magnificado pelo seu dano.
 
 
 
jack gilbert
deixem-me ser ambos
trad. leonor castro nunes e marcos pereira
destrauss
2020





27 junho 2021

jorge de sousa braga / a ferida aberta

 
 
Há uma ferida aberta que
Sangra ciclicamente  um
 
Cíclame que floresce às
Horas mais inapropriadas
 
Quem me dera poder guardar
Todos esses milhões de flores
 
Que acabam diariamente em
Pensos higiénicos nos contentores
 
 
jorge de sousa braga
a ferida aberta
assírio & alvim
2001





26 junho 2021

josé luís peixoto / na hora de pôr a mesa

 
 
na hora de pôr a mesa, éramos cinco:
o meu pai, a minha mãe, as minhas irmãs
e eu. depois, a minha irmã mais velha
casou-se. depois, a minha irmã mais nova
casou-se. depois, o meu pai morreu. hoje,
na hora de pôr a mesa, somos cinco,
menos a minha irmã mais velha que está
na casa dela, menos a minha irmã mais
nova que está na casa dela, menos o meu
pai, menos a minha mãe viúva, cada um
deles é um lugar vazio nesta mesa onde
como sozinho, mas irão estar sempre aqui.
na hora de pôr a mesa, seremos sempre cinco.
enquanto um de nós estiver vivo, seremos
sempre cinco.
 
 
josé luís peixoto
a criança em ruínas
quasi
2002