13 janeiro 2021

henri michaux / je vous écris d´un pays lointain

 
 
1
 
Nós aqui, diz ela, só temos um sol por mês, e por pouco tempo. Esfregamos os olhos com vários dias de antecedência. Mas em vão. Tempo inexorável. O sol só chega à sua hora.
 
Depois, temos uma data de coisas a fazer, enquanto dura a claridade, apesar de mal termos tempo para nos olharmos um pouco.
 
O que nos aborrece na noite é quando é preciso trabalhar, e é preciso: nascem anões constantemente.
 
 
 
 
henri michaux
(escrevo-lhe de um país distante, 1942)
antologia
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
1999




 

12 janeiro 2021

ron padgett / poema de amor

 
 
 
Temos bastantes fósforos em casa.
Deixamo-los sempre à mão.
De momento a nossa marca favorita é Ohio Blue Tip,
antigamente preferíamos a marca Diamond.
Isto foi antes de descobrirmos os fósforos Ohio Blue Tip.
Estão maravilhosamente embalados em caixinhas resistentes
com etiquetas azul-claras, azul-escuras e brancas,
e as palavras dispostas em forma de megafone,
como se anunciassem ao mundo, ainda mais alto:
«Aqui está o fósforo mais lindo do mundo,
são três-centímetros-e-meio de pinho macio,
encapuçado por uma granulosa cabeça roxa sóbria e furiosa,
teimosamente pronta a rebentar numa chama,
acendendo, talvez, o cigarro da mulher que amas,
pela primeira vez, e nada voltou a ser o mesmo
depois disso. Tudo isto lhe oferecemos.»
é isto que me deste, eu
tornei-me o cigarro e tu o fósforo, ou eu
o fósforo e o tu o cigarro, ardendo
em beijos que se esvanecem direito aos céus.
 
 
 
ron padgett
poemas escolhidos
trad. rosalina marshall
assírio & alvim
2018

 



11 janeiro 2021

gösta ågren / vigília de verão

 
 
Um incandescente pulmão
espera no Norte pelo
cigarro do sol. O teu
rosto adormecido parece
uma mensagem. Mas quem
a envia? Muito caminhámos
lado a lado
no inclinado caminho dos anos.
Por fim as pedras tornaram-se
em escuridão, mas o rosto
de um homem é mais claro que
o seu pensamento, o seu nome
mais profundo que a escuridão
dos sentimentos onde
está fechado. Agora
a noite é insensível ao dia.
Agora o teu sono é todo o crepúsculo
que resta.
 
 
gösta ågren
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé agostinho baptista 
assírio & alvim
2001
 



10 janeiro 2021

luís vaz de camões / eu cantarei de amor tão docemente

 
 
Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.
 
Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.
 
Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.
 
Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.
 
 
luís vaz de camões
sonetos




09 janeiro 2021

jesús lizano / ela e só ela

 
 
ela e só ela é a nossa essência.
Quando a tua mente é tua
e o teu sentir é teu e te libertas
da Razão compreendes
e a inocência conquista-te.
Companheiros, companheiros:
nascemos e vivemos
para que a inocência nos conquiste.
Para morrer no seu silêncio.
 
 
jesús lizano
mundo real poético
antologia
trad. carlos d´abreu
barricada de livros
2019




08 janeiro 2021

joão camilo / e voltaste

 
 
Pela janela vêem-se as mesmas árvores,
há uma planta no rebordo com folhas secas.
Passou o tempo e K. voltou
ao lugar do incêndio, à adolescência
que se prolongava, ao lugar
que vira nascer as ilusões e o amor.
De que lhe servira ter acreditado?
O destino do homem é-lhe inacessível.
Queima-o ainda, durante um longo instante,
a paixão que teve por essa mulher,
a memória do amor veemente.
Ali sentado, há tantos anos já,
lia e ouvia música.
Mas todo o amor é impossível.
Tremem-lhe as pernas,
é como se estivesse
à beira de um precipício.
Lá fora o silêncio
e a paz são intensos.
 
 
 
joão camilo
hífen 7 abril, 1992
cadernos semestrais de poesia
dias inúteis
1992




 


07 janeiro 2021

mbella sonne dipoko / exílio

 
 
Em silêncio
A canoa sobrecarregada deixa as nossas costas
 
Mas quem são estes soldados de camuflado,
Estas nuvens que irão chover em terras estranhas?
 
A noite está a perder os seus tesouros
O futuro parece um mito
Urdido num tear manejado por mãos indolentes.
 
Mas talvez nem tudo seja mau para nós
Como da porta de uma cabana a mil quilómetros de distância
A mão esquálida de uma criança cumprimenta
Os dedos compridos e ossudos da chuva,
 
 
 
mbella sonne dipoko
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução josé alberto oliveira 
assírio & alvim
2001

 
 


 

06 janeiro 2021

isabel de sá / o riso

  
 
     O pensamento transforma a imprecisão de um verso. Pode torna-lo rígido, esplendoroso ou simplesmente fazer que a loucura o contamine. Se o riso alastra no poema e não para de crescer sabemos que a perturbação atingirá toda a página. O verso é uma sombra, um fio errante e solitário sem identidade. O poeta terá o mesmo destino, uma vez que corpo e alma são a textura de um único universo.
     No perfil do meu rosto a luz provoca e anula o grito. Ao lembrar Edvard Munch, a treva das cores, também eu sou a cinza do que escrevo.
 
29.11.89
 
 
isabel de sá
hífen 6 fevereiro, 1991
cadernos semestrais de poesia
heresias
1991



 

05 janeiro 2021

vergílio ferreira / o ponto mais alto

 
 
 
158 – O ponto mais alto a que se pode ascender para daí olhar o mundo e a vida é a sabedoria que Sócrates recomendava e dizia não se poder definir ou explicar. Mas nada é explicável quando investido da sensibilidade humana, ou seja do mistério que é o próprio homem. Amor, alegria, riso e o mais, com a massa enorme de reflexão quem é que jamais os explicou? A sabedoria é incerta porque a dúvida prévia em que se dilui o seu saber, adia-lhe para sempre a definitividade do que é. Não é o «só sei que nada sei» porque aí não há saber algum. É o saber que o seu limite está no sem fim. E para essa viagem interminável ter um coração sossegado e um sorriso a acompanhar-lhe o sossego.
 
 
vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001

 



04 janeiro 2021

herberto helder / lugar

 
 
VI
 
Às vezes penso: o lugar é tremendo.
É sobre os mortos, além da linguagem.
Lugar que se transforma rodando contra a boca.
Em certos dias, habitado por crianças
de uma infelicidade obscura, sobre
o verão. Por duros e belos
peixes entre as mãos perfurando
o sono de Deus.
E eu trago uma criança com um ombro
mergulhado no sangue, e o outro
ombro metido no sono triste.
Que pensa sempre, dentro de suas águas,
e é ameaçada por uma intraduzível beleza.
Muitas crianças caminham para o silêncio
de uma semana ambígua, quando
o verão anda de um lado para outro
e se desarruma por dentro.
O verão começa pelas partes mortas.
Ao longe, nas fronteiras da ilusão.
Crianças básicas fazem de mim uma rosa
iracunda, e atiram-na
contra a boca de Deus.
Para diante, através das águas estivais.
 
Não queiram viver em mim, quando entram
como espelhos as vozes virgens.
Ou morrer, se as colinas se aproximam
tão perto do rosto, e estremecendo
com muitas vozes.
Tão respirando, as colinas que se toldam
como povos embriagados.
Eu digo: não desejem amar-me, morrer
de mim. Porque destruo com a boca
o beijo transformado.
Morro em todas as pessoas que a delicadeza consome.
Digam-me devagar quais os vocábulos alarmantes.
 
Uma história de crianças com folhas
dispersas é sempre
uma história de morte. Embora a doçura
levede sua alma cega, crianças, eis como digo:
são uma musa devoradora.
Estão ligadas a toda a grande idade,
à terrífica fantasia do tempo.
Porque falam no esgotamento e, enquanto dormem,
sonham com seu ombro fendendo o sangue,
entrando no poder de Deus.
Tenho uma criança profunda em todos os lugares.
 
Desabitai-me a beleza que bati na pedra,
abaixado e louco.
E que a mulher se desabite da solidão que tive,
enquanto falei ao alto, inspirado
pelo assassínio do amor.
Desabitem-me da minha fome e da neve
onde fui brilhante brilhante.
Brilhante como o trigo escorrido nos dedos.
Como os pés sugeridos em volta da cinza.
 
A tristeza do verão é um modo de saber.
Ou ser puro. Ou estar afastado.
É preciso abandonar-se no meio da tarefa,
enquanto o crime é o autor, embebido.
Conheço crianças esgotantes pelo sono
onde acordam.
É preciso que Deus se liberte dos meus dons.
Que se não perca em minha fabulosa
ironia.
 
Também vi crianças empurradas nos meses.
Pela leveza da luz, empurradas
crianças supremas. Vi-as da mais subtil
matéria, com cerejas, com mãos.
Porque Deus é tão leve como a água atravessada.
Água que iracundos peixes rompem em todos os lugares.
Porque um poema alude ao mistério.
E eu ia pelo ar
de um canto de devotamento, eu
amava e amava.
E então levanto de mim próprio, contra
a inspiradora confusão,
as mãos de crianças preciosas caídas em sangue.
Mãos que Deus exerce no sono.
 
Deixai às crianças minhas zonas primitivas.
Minha terna loucura.
Deixai-as virar a alma para o lado,
de cara contra uma fria onda.
Em mim é que nascem e vivem com nomes
castos, e esquecem.
E de repente se lembram, e se esquecem
de tudo.
Porque são delicadíssimas.
E verdadeiras.
 
Abandonai-me no mês de Deus aberto,
com as crianças sorrindo com grãos de sal.
Esse Deus sobre as patas ao lado
de catedrais difusas.
Onde encosto meu rosto cor de neve lilás,
da cor assaltada das lágrimas.
Cor de quando tudo pára.
É a minha voz que se ouve para diante da noite,
voz tremente e limpa.
Voz acocorada depois numa obra obscura,
mais morosa do que a ambiguidade.
Voz bebida em si própria.
 
Meu sangue percorre os mortos
que me beijam no escuro com sua boca
de barro fechado.
O sangue passa por toda a doçura.
Os mortos tremem, luzem com o dom
em mim voltado para a sua solidão.
E criam, em cadeia, a mãe
descida em silêncio, mais remota
por detrás dos dons.
 
Um galho de sangue bate contra seus ouvidos.
Mãe afogada em poeiras interiores.
E chegada, então ao cimo da escada.
Olhando pelos meus dons dentro, olhando
o meu dom.
Olhando toda a minha força, ela
ao cimo de uma escada terrível, olhando
dentro de uma doçura mortal
a solidão dos meus dons. Olhando
inteiramente.
 
Deixai-me em todos os lugares, em cada
mês que principia.
Violinos e campânulas são imagens rarefeitas.
Peixes, casulos, pepitas misturadas.
Sobre o nocturno tema de Deus, despeço-me de todos.
Não me sabem as crianças, e eu sei
todas as crianças num poema prédio em chamas.
Nos meus dons.
 
E então penso: o lugar é terrível.
 
 


herberto helder
poesia toda
lugar
assírio & alvim
1996





03 janeiro 2021

jesús llorente / desordem

 
 
 
Por então vivi a minha temporada no inferno.
Quando não sabia quem era eu ou quem se empenhava
em desalojar de mim o meu lado mais ingénuo,
aquele tão suicida, tão acidentado e turvo
que corria ao mesmo tempo em todas as direcções,
passava as tardes
debaixo das aiadas sombras das árvores
e pensava que o amor
era um monte de sombras chinesas
entre as pernas dela.
Algumas manhãs tornava-se difícil respirar,
olhar-se ao espelho
com o coração como um papel amarrotado
e manter uma antiga compostura,
sentir o grito do sangue
e saber que a idade nos declarou a guerra
sem conversações prévias nem grandes ameaças
antes de te haver dado tempo
de proclamar a tua desolada independência.
Não há fronteiras entre a infância e a juventude,
apenas um precipício infestado de ramos salvadores
que te rasgam as mãos quando tentas
não cair com o peso dos teus anos e do teu estômago.
Profundo parece o abismo, e milagroso
um choque sem feridas imediatas
nem negras rochas com as tuas impressões digitais.
Crescer revela-se-nos com a tristeza repentina
e o próprio suor frio e pegajoso
dos minutos que sucedem ao pior sonho,
a própria angústia transcendente
dessas manhãs em que perguntas
quem diabo será esta que dorme ao meu lado,
como é possível que tenhamos bebido tanto,
por que não fiquei eu em casa,
e calculas os estragos, e choras em silêncio.
Crescer não parece grande coisa nem pinta a cara
com as cores do vencedor, não tem
cartão de visita, nem as unhas negras e afiadas,
nem se esmera com um fato cinzento nem seus olhos são de areia,
mas a pouco e pouco faz-se com tudo o que é teu:
as páginas amarelas, o teu sistema nervoso,
a caderneta de poupança, as linhas da tua boca,
ocupa-se das tuas coisas e rouba-te as merendas,
conta-te histórias à noite para adormeceres
até que o tempo é O Tempo com maiúsculas
e és como a morte num filme de Bergman.
 
 

jesús llorente
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000

 



02 janeiro 2021

wystan hugh auden / gare du midi

 
 
Chega do sul um comboio qualquer;
Muita gente cá fora; um rosto
Que não tem a recebê-lo o presidente acompanhado
De fitas e fanfarra: na sua boca um esgar
Enche o nosso olhar de compaixão e alarme.
Neva. Apertando uma pequena pasta,
Ele sai, decidido, para infectar a cidade,
Cujo terrível futuro pode ter acabado de chegar.
 
 
w. h. auden
antologia de poesia anglo-americana
de chaucer a dylan thomas
trad. antónio simões
campo das letras
2002




 

01 janeiro 2021

wislawa szymborska / allegro ma non troppo

  

Tu és bela – digo à vida –
mais esplêndida não podias,
de rouxinóis e de rãs,
de formigas e sementes.
 
E tento ser-lhe agradável,
bajulá-la, olhá-la nos olhos.
Sou sempre a primeira a saudá-la,
de humilde expressão na fronte.
 
Vou-lhe saltando ao caminho,
da esquerda, da direita,
e fascinada me elevo,
e de enlevo me estatelo.
 
Que marinho este cavalo!,
que silvestre é esta amora! –
nunca em tal houvera crido
se não tivesse nascido.
 
– Não encontro – digo à vida –
nada a que possa igualar-te.
Ninguém fará outra pinha,
nem melhor, nem menos bem.
 
Louvo-te a generosidade, a criatividade,
a decisão e o rigor –
e mais ainda – e mais além –
a magia – a negra e a branca.
 
Só para não te ofender,
te irritar, descontrolar.
Eu saltito sorridente
há uns bons cem mil anos.
 
Arranho a vida pela bainha de uma folhita:
Terá parado? Ouviria?
Só uma vez, por um momento,
esqueceu-se de para onde ia?
 
 
 
wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998