13 dezembro 2020

armando silva carvalho / conversa cortante

 
 
As navalhas conversam numa pausa mansa
e sob o ardor do verão as ancas
as ancas amolecem.
É na sombra da sombra que o seu metal
deslumbra e o desejo estremece
no chão das catacumbas.
O seu fulgor exacto rebrilha
rente às praias onde se abusa do tempo
que já devora as dunas.
Em cada corpo em chaga um sol negro rebenta
e o mar preso ao passado
devolve à multidão exaltados naufrágios.
 
 

armando silva carvalho
técnicas de engate 1979
o que foi passado a limpo, obra poética
assírio & alvim
2007

 




12 dezembro 2020

alberto pimenta / aspirina

 
 
da conversa que ontem tive
com o senhor do universo
resultou o seguinte:
 
dentro de cada cabeça
há uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
dentro de cuja cabeça naturalmente
há também uma árvore do bem e do mal
com o respectivo jardineiro
 
o qual dentro da cabeça
tem também uma árvore do bem e do mal
e o respectivo jardineiro
 
e assim por diante
tudo já se vê em dimensões microscópicas
 
mas não sei se entendi bem
o que ele quis dizer
 
 
 
alberto pimenta
obra quase incompleta
fenda
1990

 



11 dezembro 2020

konstandinos kavafis / cinzentos

 
 
Ao olhar uma opala meio cinzenta
lembrei-me de dois belos olhos cinzentos
que vi; haverá uns vinte anos…
 
………………………………………………………………
 
Durante um mês amámo-nos.
Foi-se embora depois creio que para Esmirna,
para lá trabalhar, e nunca mais nos vimos.
 
Ter-se-ão desfeado – se vive – os olhos cinzentos;
ter-se-á estragado o belo rosto.
 
Memória minha, guarda-os tu tais como eram.
E, memória, o que podes deste meu amor,
o que podes traz-me de volta esta noite.
 
 
 
 
konstandinos kavafis
poemas e prosas
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
1994




10 dezembro 2020

federico garcia lorca / dois marinheiros na margem

 
 
I.
 
Trouxe no seu coração
um peixe do Mar da China.
 
Às vezes vê-se passar
diminuto nos seus olhos.
 
Esquece, sendo marinheiro,
os bares e as laranjas.
 
Olha a água.
 
 
II
 
Tem a língua de sabão.
Lava as palavras e cala-se.
 
Mundo liso, mar frisado,
cem estrelas e um barco.
 
Viu as varandas do Papa
e doirados seios de cubanas.
 
Olha a água.
 
 


federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013




09 dezembro 2020

edgar lee masters / richard bone

 
 
Quando vim para Spoon River
não sabia se aquilo que me diziam
era falso ou verdadeiro.
Traziam-me o epitáfio
e enquanto eu trabalhava eles cirandavam pela oficina
e diziam «Era tão boa pessoa», «Era encantador»
«Não havia mulher mais afável», «Era um verdadeiro cristão».
E eu cinzelava na pedra o que eles me pediam,
ignorando por completo a verdade.
Mais tarde, à medida que convivia com a gente da terra,
já sabia se os epitáfios que me encomendavam
correspondiam ou não à vida do defunto.
Mas continuava a cinzelar aquilo para que me pagavam,
tornando-me cúmplice das falsas crónicas
na pedra das lápides,
tal como faz o historiador que escreve
sem conhecer a verdade,
ou porque alguém o persuade a esconde-la.
 

 
edgar lee masters
spoon river
tradução josé miguel silva
relógio d´água
2003




08 dezembro 2020

adonis / seis notas do lado do vento

 
 
6
 
                Geograficamente, pertenço a um país situado na metade oriental do mundo. Mas se sou nativo desse Oriente, é antes de mais porque crio o meu próprio Oriente. Não lhe pertenço senão na medida em que ele próprio me pertence. Esse Oriente é ao mesmo tempo memória e esquecimento, presença e ausência. Afirma o caos de que não se sabe se é a argila ou a mão, a luz ou a noite, o nada ou o tudo. O Oriente para mim é o indefinível, a extensão vaga, o homem na sua errância original. Quando penso nele, interrogo-me: a poesia, nos seus múltiplos modos, pode não significar esse Oriente?
 
 
adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016




 

07 dezembro 2020

nuno júdice / carta aos que ficam

 
 
As sensações destruídas restauram as fronteiras
do Corpo. Num largo interstício de tempo
a consciência cria o ócio e o seu reverso. Talvez
um faro animal sugerisse um trabalho diferente
sobre as estrofes e as palavras. No entanto,
os que ficam (e sobrevivem) ocupar-se-ão de tudo.
Eles não sofrem o estrangulamento húmido
da manhã.
 
Penso nas faculdades d a analogia, nos defeitos
Que separam a compreensão da vontade. (Seja
– demasiado abstracto. É assim o poema. Nada
De precipitações materiais, nem de tacto,
nem dos outros quatro sentidos. O acaso burguês
do silêncio não passa aqui de uma terrível
coincidência, de uma vertigem no interior
dos códigos.)
 
A transformação do Ser é um instante de repouso.
 
 
nuno júdice
o mecanismo romântico da fragmentação
editorial inova
1975

 




06 dezembro 2020

maria-mercè marçal / todo o sangue, todo o sal em ti

 
 
Todo o sangue, todo o sal em ti.
Sombras além, os seus olhos me assendam
por caminhos claros – trigo, pão, sulco.
Sombras aquém, os meus lábios machucam
as bordas do amor, tantos velhos roxos
abrasam minha língua e gengiva.
Seguir-te, amor, seguir a sua mão
pequena – doce e dura! Mas a asa
de qual noite… as garras… qual falcão?
E assim eu te arrasto até ao meu deserto.
 
 
 
 
maria-mercè marçal
desglaç / degelo
tradução meritxell hernando marsal
e beatriz regina guimarães barboza
editora urutau
2019




05 dezembro 2020

jorge melícias / todo o horror é uma interpelação à beleza

 
 
Todo o horror é uma interpelação à beleza.
E só à beleza vai buscar o seu referente.
 
Tudo o mais deverá ser imputado a quem vê:
a rapina
de um campo de batalha
 
ou os mastins
cruzando a ternura da devastação.
 
 
jorge melícias
felonia (2013)
a oratória dos mansos
porto editora
2020

 



04 dezembro 2020

jennifer clement / a casa nocturna

 
 
Aqui, para falar verdade,
não há cabides para os meus braços,
 
armários para as minhas pernas,
ganchos para as minhas mãos.
 
À noite na Casa Nocturna
não há prateleira para a minha sombra.
 
Aqui, vou dormir
vestida com o meu corpo.
 
 
 
jennifer clement
afagando a face de lorca
uma antologia
trad. francisco josé craveiro de carvalho
companhia das ilhas
2020




 

03 dezembro 2020

vladimir maiakóvski / insignificâncias

 
 
Exibirei a série de cores da minha imaginação como a cauda de um
       pavão,
entregarei a minha alma a um enxame de rimas desconhecidas.
Quero ainda ouvir nas colunas dos jornais rezingar
aqueles
que com o focinho zurzem as raízes
do carvalho que os alimenta.
 
 
vladimir maiakovski
33 poesias
trad. adolfo luxúria canibal
edições snob
2019

 




02 dezembro 2020

claudio rodríguez / céu

 
 
Agora sim preciso mais que nunca
de olhar o céu. Já sem fé, sem ninguém,
findo este seco meio-dia, levanto
os olhos. E é a mesma verdade de antes,
embora a testemunha seja outra.
Riscos de uma aventura já sem lendas
nem anjos, e nem sequer esse azul
da minha pátria. Pagaria para
sorver o ar, erguer os olhos, ver
sem recompensa, aceitar uma graça
que não cabendo nos sentidos dá
saúde nova, alívio, ocupação.
Troco pelo amor o dom, esta beleza
que não mereço nem ninguém merece.
Preciso hoje do céu mais que nunca.
Não para me salvar, para não estar só.
 
 
 
claudio rodríguez
sem epitáfio
trad.miguel filipe mochila
língua morta
2019





 

01 dezembro 2020

marin sorescu / historioterapia

 
 
 
Se ando com insónias,
À noite, antes de me deitar
Tomo um atlas histórico
Com um pouco de água.
 
Enquanto espero o efeito,
Sigo com o dedo
O império dos hititas,
Mas após um momento
Tenho de recomeçar.
 
Porque, de facto, o império dos hititas
É o império dos egípcios,
Ah, não, o dos assírios…
Dos medo-caldeus…
Dos persas…
 
Se as coisas são assim, penso,
Também eu posso dormir
Tranquilo.
 
 


marin sorescu
simetria
tradução colectiva revista, completada e apresentada
por egito gonçalves
poetas em mateus
quetzal
1997