11 janeiro 2020

federico garcia lorca / ai!


O grito deixa no vento
uma sombra de cipreste.

(Deixai-me neste campo
chorando.)

Tudo se perdeu no mundo.
Não ficou mais que o silêncio.

(Deixai-me neste campo
chorando.)

O horizonte sem luz
está mordido de fogueiras.

(Já vos disse que me deixeis
neste campo
chorando.)



federico garcia lorca
poemas
trad. de eugénio de andrade
assírio & alvim
2013






10 janeiro 2020

maria gabriela llansol / causa amante


 4 – foi a observar as beguinas migratórias que
      aprendi muito sobre o comportamento das aves;
      pelo verde, e pelo Inverno, espero o momento
      em que me seja revelado
      quantos do nome de João
      fizeram o meu nome.
      As beguinas que migram,
      não encontraram aqui nem o alimento,
      nem o modo de vida adequado.
      Não declaram morto o que está morto:
      pensam que adormeceu, e não o acordam.



maria gabriela llansol
causa amante
a regra do jogo
1984






09 janeiro 2020

jorge de sena / aprender


I
Passo a minha mão pela tua cabeça,
recurvamente, atentamente, e só com dedos brandos,
olhando-a como passa e vendo onde passou.

Quero tanto saber o que tu pensas.

II
O que tu pensas, mas apenas como,
e quando e o porquê, e não
que estejas pensando ou não que a minha mão,
atenta e recurvada, passa brandamente.

Quero saber aquilo que nem sabes.

III
Aquilo que nem sabes – como saberias
o que o pensar é antes de pensar-se?

A mão que pousa e vai passar atenta.
O olhar que espera ver passar o gesto.
A tácita lembrança de volver os olhos.
A brisa que sabemos vai soprar tão mansa,
ainda antes, no fremir de pétalas ou folhas,
mas não na expectativa do arrepio prévio.

IV
Por que esperaste, ciente, a pele da minha mão?


jorge de sena
fidelidade (1958)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972







08 janeiro 2020

juan vicente piqueras / proposta de epitáfio



Em criança fui imortal. Em adolescente
rebelei-me contra o que agora sou.
Em jovem fui selvagem. Fiz sofrer
e sofri muito mais do que quis.
Pouco a pouco a morte (era semente
e parecia alheia) foi crescendo
dentro de mim, feliz, recuperando
o que era seu e eu soube de que era feita
a vida já bem tarde. Na velhice
beijava a água e abraçava o ar
como o doente abraça a esperança
ou o náufrago a espera. Nunca o mundo
foi tão belo como antes de partir.
Agora já não existe. Agora sonho
que o que já não sou volta a nascer.



juan vicente piqueras
instruções para atravessar o deserto
trad.joão duarte rodrigues
e manuel alberto valente
assírio & alvim
2019







07 janeiro 2020

joão luís barreto guimarães / a mesma chuva de sempre



Voltamos para casa tarde
(a cama: ainda
por fazer)
o lençol afeiçoado àquele
vinco da manhã e
percebo pela imagem como assentimos a pressa
como o
dia é uma partida com a meia cinzenta rota
no dedo grande do pé. Eu e
o cadeirão de madeira gastamos o
mesmo número de ombros
(hoje usou o dia inteiro a
minha camisa aos quadrados).
O fim de tarde repousa em vasilhas
junto à entrada no
canto da sala onde fomos deixando apinhoar o
monte de jornais antigos com recortes por fazer
(na nódoa que
assentimos: passasse a ser parte integrante do
padrão do sofá)
no cabelo que imolaste ao
meu lado do lençol testemunhando que ontem
ontem sim
ontem sim. A
felicidade entra em casa em sacos de hipermercado –
está de volta o estranhamento de
fugaz tranquilidade por
sabermos que o ruído que insiste sobre o telhado
não
é o céu a cair
(não são anjos a chorar)
são apenas os acordes da
mesma
chuva de sempre.



joão luís barreto guimarães
rés-do-chão (2003)
o tempo avança por sílabas
poemas escolhidos
quetzal
2019





06 janeiro 2020

mário cláudio / orvieto, 15.9.86



tiago manuel


Orvieto, 15.9.86

Na máscara de um etrusco se transformava, às vezes. Brilhava no bronze que o poente tingia, a cada instante se esfarelando. Era um grito de guerra, o estertor da posse consumada. Adiava-se por terrenos semeados, necrópoles acabadas de exumar, vindimas de mosto e sangue. Dele se contava que havia conhecido a alegria mortuária, o gesto pequeno com que ao além se transita. Bastava isso à respiração, em sua companhia viajávamos nas galerias da terra.



mário cláudio
hífen 1 out. 87/ mar. 88
cadernos semestrais de poesia
1987








05 janeiro 2020

maria teresa horta / mãe



mãe
terminou o tempo
de sorrir
desculpa-me a morte
das plantas

tatuei a tua antiga
imagem loura
em todos os pulsos
que anjos inclinam
de existires

perdi-me noite na planície
branca
sobrevivente das madrugadas
da memória

trocaram-me os dias
e as ruas de ancas
verticais
e nas minhas mãos incompletas
trouxe-te
um naufrágio de flores
cansadas
e o único jardim d´amor
que cultivei
de navios ancorados
ao espaço


maria teresa horta
espelho inicial
1960





04 janeiro 2020

natália correia / uma laranja para alberto caeiro


Venho simplesmente dizer
que uma laranja é uma laranja
e comove saber que não é ave
se o fosse não seriam ambas
uma só coisa volátil e doce
de que a ave é o impulso de partir
e a laranja o instinto de ficar.

Não sei de nada mais eterno
do que haver sempre uma só coisa
e ela ser muitas diferentes
e cada coisa ternamente ocupar
só o espaço que pode rodeada
pelo espaço que a pode rodear.

Sei que depois da laranja
a laranja poderá ser até
mesmo laranja se necessária
mas cada vez que o for
sê-lo-á rigorosamente
como se de laranja fosse
a exacta fome inadiável.

De ser laranja gomo a gomo
o íntimo pomo se enternece
e não cabe em si de amor
embriagada de saber
que a sua morte nos será doce.


natália correia
o vinho e a lira
1967





02 janeiro 2020

harold pinter / ano novo nas midlands



E lá volta ela, a soprar, a hospedeira dos rapazes
Amontoados pelo chão
E canta «Ó Luz Celestial» fazendo
Oscilar a perna de pau
como um esquadro sobre a corrente.
Eis o brilho, o pó e o sangue e eu estou aqui,
Instável, exilado sempre numa cidade onde se bebe Whitbread Ale,
Ou coisa assim.
Foi onde fomos ao bar amarelo, entalado num beco de lixo,
A um passo do mercado,
E aí foi que vimos o magro e efeminado Luke, cujos pálidos
Incisivos olhos, gabardine, victoriano,
Enfraquecem a resposta na mão.
Os apertos, maneirismos, gaguejar e cerveja
Desta noite de Ano Novo; o salmo parodiado;
As mulherzinhas caranguejos negros com longos
Olhos, ceceio e garras, numa lata repleta.
Estou amarrotado no calor dos passos: os rapazes marinheiros
Cambaleantes cedo embalados até adormecerem cujo figo furão
Acalma a moeda da febre de um dia.
Ora, nesta trepidação de um bar em festa, provoco e perturbo
A abatida senhora do bar
Que faz beicinho com o cigarro que se desponta eriçado –
Polvilhados e cortados aos cubos a estas luzes das Midlands
Estão Freda alcoviteira gemente e vítrea, e o vosso atabalhoado guia,
Abençoados com erva-ambrósia – Vede
Como mãos radiosas
Soltam os genitais da cidade –
Rapazes e velhos
Com olhos de escaravelho,
As putas atrevidas com papada, o rapaz
De camisa vermelha percorrendo, em fúria, com pesados passos, a sua
      jaula.
 
                                                                                                   1950



harold pinter
várias vozes
tradução jorge silva melo e francisco frazão
quasi
2006








01 janeiro 2020

paul strand / elegia pelo meu pai




6 -  O ANO NOVO

É inverno e o ano novo
Ninguém te conhece.
Longe das estrelas, da chuva de luz,
Estás deitado sob um tempo de pedras.
Não há linha para te guiar de volta.
Os teus amigos dormem na escuridão
do prazer e não conseguem lembrar-se.
Ninguém te conhece. És o vizinho de nada.
Não vês a chuva a cair e o homem a afastar-se,
O vento terroso a soprar as suas cinzas por toda a cidade.
Não vês o sol a puxar a lua como um eco.
Não vês o coração ferido a incendiar-se.
Os crânios dos inocentes a tornarem-se fumo.
Não vês as cicatrizes de muitos, os olhos sem luz.
Acabou. É inverno e o ano novo.
Os submissos arrastam as suas peles para o céu.
Os desesperados sofrem o frio com os que não têm nada a esconder.
Acabou e ninguém te conhece.
Está a luz de uma estrela a flutuar na água preta.
Estão pedras no mar que ninguém viu.
Está uma margem e as pessoas esperam.
E ninguém volta.
Porque acabou.
Porque é silêncio em vez de um nome.
Porque é inverno e o ano novo.




paul strand
apeadeiro
revista de atitudes literárias
nr. 2 primavera 2002
tradução josé luís peixoto
edições quasi
2002





31 dezembro 2019

ruy belo / a história de um dia



A abóbada da tarde mais uma vez acaba
o sol de a fechar sobre a minha diária aventura
Viram-no partir pontualmente à mesma hora
quando num pouco de dia a um canto sempre a um canto
já eu tinha conseguido arredondar
uma íntima ampola de som para a palavra definitiva
Ia mesmo soltá-la eu que todo o dia fui para ela quando
ele me deixou e foi abrir outras portas
erguer verticalmente caídas esperanças
e passar novas mãos por tantas faces mortas
Só me resta recolher o meu rebanho de pensamentos
com um vago rumor de guizos
enquanto à beira-mar os camponeses deixam
palavras não aladas cair na água morta
Morro irremediavelmente nesses pensamentos
que ainda agora o sol iluminava
enquanto eu os estendia e os recolhia
e os orientava numa direcção que convinha
e os precipitava sobre o fumo de uma casa
sobre um buraco de luz ou uma coluna de fumo
mais volúveis que um bando de pássaros
Morro mais uma vez criticamente completo
Todos os gestos
carregados com vinte e quatro horas de história
de ventre ferido na aventura do restolho
petrificaram inevitavelmente
na face orientada de uma estátua
aqui ou noutro jardim
Todo o caminho é de regresso
Amanhã serei outro:
lavarei os dentes com toda a solenidade
como antigamente meu pai antes das grandes viagens
enquanto alguém no espelho
se encarregará de olhar pelos meus olhos
Assim sou passado de dia em dia
confiado pelo dia que parte ao dia que chega
não venha o sino que ao longe toca perturbar
as linhas de um rosto que recompus
e pus de pé na atmosfera doméstica
Fechar um postigo pode ser um gesto cheio de significado quando
na arrumada paisagem quotidiana
a expectativa marcada pela funda inspiração
nos revela duas ou três mãos
postas sobre a colina
Amanhã serei outro



ruy belo
todos os poemas I
dedicatória
assírio & alvim
2004





30 dezembro 2019

mário cesariny / visualizações



I

suave
a vela abre
e principia
o dia

ela
que pelo azul
que corta
considera e chama
outras velas irmãs para o claro rio
e enquanto
o cais
é um enorme navio
que se nega
e no entanto cumpre
a mais estranha viagem

ela
que parte
vira
para o que abandona
um olhar de brancura
que é toda a matemática
singela
da manhã que a inspira



mário cesariny
manual de prestidigitação
assírio & alvim
1981