13 abril 2019

roberto juarroz / as coisas imitam-nos




As coisas imitam-nos.
Um papel arrastado pelo vento
reproduz os tropeços do homem.
Os ruídos aprendem a falar como nós.
A roupa adquire a nossa forma.

As coisas imitam-nos.
Mas no final
nós imitaremos as coisas.



roberto juarroz
a árvore derrubada pelos frutos
trad. rui caeiro, duarte pereira e diogo vaz pinto
língua morta
2018






12 abril 2019

egito gonçalves / notícia para colar na parede




Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente


egito gonçalves
o amor desagua em delta
editorial inova
1971






11 abril 2019

al berto / salsugem



8
contaram-me que eram pesadas embarcações
tinham singrado tormentosos mares contornado arquipélagos
atravessado invernos e trópicos que não vêm ainda nos mapas
e chegavam agora ao sonho
carregados de madeiras preciosas pimenta peles almíscar
canela pérolas animais empalhados
frutos cujos nomes são difíceis de dizer
e largam prolongados sabores na polpa dos dedos

vinham as tripulações exaustas
pelos rigorosos ventos e agitadas águas longe de casa
onde o lume permanece aceso de refeição para refeição
alumiando a noite e o coração das mulheres insones
ciciando nomes de portos ladainhas para consolar a dor
cuidam dos filhos e das frieiras com as bondosas mãos
sujas de azeite… bordam intermináveis cantilenas
vergadas para as toalhas manchadas de vinho e gordura barata

quando recebiam recado dalgum naufrágio
o tempo punha-se a passar sobre elas
o luto fazia-as suspirar no vapor dos tachos de comida
o sal desbotava-lhes a cor ainda jovem do olhar
engelhava-lhes bocas e seios… punham-se a cismar
depois de terem arrumado na gaveta os retratos dos homens
lembravam-se pouco
iam em bandos até ao porto
sentavam-se encolhidas dentro dos rudes xailes
dormitavam à espera que acostassem mais navios
para o descarrego de panos finos jade tabaco marfim cereais
e o amor incerto dalgum homem acabado de chegar
da parte ainda obscura do mundo



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997





10 abril 2019

rui costa / breve ensaio sobre a potência



2
água sobre a mão quando o
sono se deita, um vértice de
pedra subindo entre o caule
da sombra e a propagação do
medo. a luz provoca a primeira
nostalgia, o íncubo que dispara
como um halo que espera.




rui costa
breve ensaio sobre a potência
(texto-ensaio composto por 31 fragmentos)
mike tyson para principiantes
antologia poética
assírio & alvim
2017






09 abril 2019

ruy belo / literatura explicativa




O pôr-do-sol em espinho não é o pôr-do-sol
nem mesmo o pôr-do-sol é bem o pôr-do-sol
É não morrermos mais é irmos de mãos dadas
com alguém ou com nós mesmos anos antes
é lermos leibniz conviver com os medici
onze quilómetros ao sul de florença
sobre restos de inquietação visível em bilhetes de eléctrico
Há quanto tempo se põe o sol em espinho?
Terão visto este sol os liberais no mar
ou antero de junto da ermida?
O sol que aqui se põe onde nasce? A quem
passamos este sol? Quem se levanta onde nos deitamos?
O pôr-do-sol em espinho é termos sido felizes
é sentir como nosso o braço esquerdo
Ou melhor: é não haver mais nada mais ninguém
mulheres recortadas nas vidraças
oliveiras à chuva homens a trabalhar
coisas todas as coisas deixadas a si mesmas
Não mais restos de vozes solidão dos vidros
não mais os homens coisas que pensam coisas sozinhas
não mais o põr-do-sol apenas pôr-do-sol



ruy belo
todos os poemas I
palavra[s] de lugar
assírio & alvim
2004





08 abril 2019

herberto helder / poemacto




V
As barcas gritam sobre as águas.
Eu respiro nas quilhas.
Atravesso o amor, respirando.
Como se o pensamento se rompesse com as estrelas
brutas. Encosto a cara às barcas doces.
Barcas maciças que gemem
com as pontas da água.
Encosto-me à dureza geral.
Ao sofrimento, à ideia geral das barcas.
Encosto a cara para atravessar o amor.
Faço tudo como quem desejasse cantar,
colocado nas palavras.
Respirando o casco das palavras.
Sua esteira embatente.
Com a cara para o ar nas gotas, nas estrelas.
Colocado no ranger doloroso dos remos,
dos lemes das palavras.
É o chamado rio tejo
pelo amor dentro.
Vejo as pontes escorrendo.
Ouço os sinos da treva.
As cordas esticadas dos peixes que violinam a água.
É nas barcas que se atravessa o mundo.
As barcas batem, gritam.
Minha vida atravessa a cegueira,
chega a qualquer lado.
Barca alta, noite demente, amor ao meio.
Amor absolutamente ao meio.
Eu respiro nas quilhas. É forte
o cheiro do rio tejo.

Como se as barcas trespassassem campos,
a ruminação das flores cegas.
Se o tejo fosse urtigas.
Vacas dormindo.
Poças loucas.
Como se o tejo fosse o ar.
Como se o tejo fosse o interior da terra.
O interior da existência de um homem.
Tejo quente. Tejo muito frio.
Com a cara encostada à água amarela das flores.
Aos seixos na manhã.
Respirando. Atravessando o amor.
Com a cara no sofrimento.
Com vontade de cantar na ordem da noite.
Se me cai a mão, o pé.
A atenção na água.
Penso: o mundo é húmido. Não sei
o que quer dizer.
Atravessar o amor do tejo é qualquer coisa
como não saber nada.
É ser puro, existir ao cimo.
Atravessar tudo na noite despenhada.
Na despenhada palavra atravessar a estrutura da água,
da carne.
Como para cantar nas barcas.
Morrer, reviver nas barcas.

As pontes não são o rio.
As casas existem nas margens coalhadas.
Agora eu penso na solidão do amor.
Penso que é o ar, as vozes quase inexistentes no ar,
o que acompanha o amor.
Acompanha o amor algum peixe subtil.
Uma estranha imagem universal.
O amor acompanha o amor.
É preciso uma existência de uma dureza lenta.
As barcas gritam.
A água é geral sobre a cara que respira.

Posso falar às mãos.
Posso extremamente falar às palavras.
É nas palavras que as barcas gemem.
Nelas se estabelece o rio.
Falo da minha vida quente.
Palavras — digo — é tão quente a noite
que atravessamos.
Barcas quentes.
Geral calor no meio da carne.
E agora o rio tejo acende-se no meio
de muitas palavras.
Amor da vida do tejo com a minha
grande vida pura.
Com meu amor completo como um rio.

                                                  1961.



herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996





07 abril 2019

camilo pessanha / ao longe os barcos de flores



Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora.

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...


camilo pessanha
clepsidra
1920






06 abril 2019

rainer maria rilke / e a sua voz vem de longe,




E a sua voz vem de longe,
começou antes do nascer do sol, vagueando
semanas e semanas pelas grandes florestas
e falou em sonhos com daniel
e viu o mar e fala do mar.


rainer maria rilke
o livro da pobreza e da morte
trad. ana diogo e rui caeiro
edições snob
2019











05 abril 2019

reinaldo ferreira / na vida somos iguais




Na vida somos iguais
Às peças que no xadrez
Valem o menos e o mais,
Segundo o acaso que as fez

Do mesmo cepo nascer
Para as batalhas pensadas,
Aos mais, peões de perder,
A raros, ficções coroadas.

Mas, findo o jogo, receio
Que, extintas as convenções
Durma a rainha no meio
Dos mal nascidos peões.


reinaldo ferreira
poemas
vega
1998








04 abril 2019

vladimir maiakóvski / e tu poderias?




De repente salpiquei para fora do copo de tinta
um mapa do quotidiano.
Mostrei num prato de geleia
As oblíquas maçãs do rosto do oceano.
Nas escamas de um peixe de ferro branco
li o apelo de lábios novos.
E tu,
poderias tu
tocar um nocturno
com a flauta das goteiras?



vladimir maiakovski
33 poesias
trad. adolfo luxúria canibal
edições snob
2019






03 abril 2019

antonin artaud / os seres




Os seres
não saem
para o dia exterior

Não têm outro poder
senão jorrar
na noite subterrânea
onde se formam.

Mas já há eternidades
que passam o tempo deles
que passam o tempo
a fazer-se
assim
nem um só
alguma vez se produziu.

É preciso esperar
que a mão do Homem
os tome e os faça
pois só
o Homem
não nascido e predestinado
                       tem
essa terrível
                       e
inefável
capacidade


tirar o corpo do humano
à luz da natureza
mergulhá-lo vivo
no luar da natureza
onde o sol o desposará
                        por fim.



antonin artaud
para acabar de vez com o juízo de deus
e outros textos finais (1946-1948)
trad. pedro eiras
flop
2019






02 abril 2019

luís miguel nava / já nem sequer




As ondas que se encontram
ainda agora em formação no espírito
dele já não vêm rebentar ao meu.

Por mim não volto a vê-lo, encontros houve
com ele dos quais a alma ficou cheia de dedadas.

Já nem sequer dele quero ouvir falar,
saber que se ele
fosse uma cama estaria por fazer nada me traz
agora além de desconforto.



luís miguel nava
como alguém disse
desenhos de manuel cargaleiro
contexto editora
1982






01 abril 2019

ana curado / vejamos: a poesia é uma coisa



Vejamos: a poesia é uma coisa
Estafada, fácil, quase insuportável
De se ler, mas, porque me é agradável,
Escrevo para entreter, animo a coisa!

Torna-se uma espécie de dever.
Perguntam críticos, leitores: pode lá ser?!
Mas pode! Concerteza! Há neste país
Alguma gentinha que o que fiz

Não há-de nunca fazer, há-de na espelunca
Horripilar-se, dar ar de enfado, estremuca!
E depois dirá que não a lê – mas a lê
E escreve – pois não lê quem não lê, não se vê?

Não? Não digas, nada! E se te alaga,
Como escreve quem já me aborrece, Sê!
E se não podes salvar-te, diz, se te agrada,
Um palavrão, que às vezes alivia, e coisa!



ana curado
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987