13 fevereiro 2019

till lindemann / estranho




Como é estranho o que se transforma em dia
Que tu vivas é o que está em causa
Estranho é o que se transforma em noite
Trouxe-te bem para debaixo de mim

No crepúsculo vermelho lava-se o dia
levo-te aos mortos amanhã
para que a multidão não se esqueça
de qual de nós já morreu



till lindemann
nas noites tranquilas
trad. pedro garcia rosado
alma mater
2018






12 fevereiro 2019

luiza neto jorge / o sítio em visita




*

Há no mundo inteiro uma, quando muito, rua
difícil de encontrar.

São os campos, gente humílima, absorta em grãos
de areia, praia inequívoca onde,
na estação tardia, os do mar se deitam.

Algumas folhas, de livros, assinalam o ponto.
Algumas cartas, de marear,
não chegam.



luiza  neto jorge
os sítios sitiados
poesia
assírio & alvim
1993







11 fevereiro 2019

luís miguel nava / rapazes




Foi há cerca de um ano que eu
os vi, onde o granito e a luz são consanguíneos.

Seguiam abraçados um
ao outro, o pensamento posto no amoroso
lençol de que era na mão deles
o guarda-chuva uma antecipação.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002






10 fevereiro 2019

bernardo soares / a leitura dos jornais, sempre penosado ponto de ver estético,




A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso — chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrificio de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca (...) — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







09 fevereiro 2019

maria gabriela llansol / LXII. dedico




a melodia é para a árvore e folhas; a leitura, a escrita, para o rosto entre ambas; o texto, ao entrar na árvore, sai paisagem. Resta-me a dor de aprender a identificar.



maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & alvim
2006







08 fevereiro 2019

jorge velhote / fria é a água na escuridão




.11.

Na noite cintilam entre paredes
os despojos da pele e uma labareda
devastando os ossos dispara
a cegueira.
Infinitamente desce no teu olhar
apenas uma gota de luz
que varre das pedras a poeira inútil
a dor e a loucura.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018






07 fevereiro 2019

fernando pinto do amaral / escotomas



2.
Depois da tempestade é mais difícil
continuar fiel ao fogo,
encontrar um refúgio nas cinzas
deste vulcão silencioso. O tempo
devora a minha voz e adormece
todo o amor, todo o medo,
sob o peso de um grito. Não resisto
à luz que se despede
do coração doente – sei apenas
que a verdade se move entre a poeira
de cada corpo, à espera de rezar
uma oração feliz e tenebrosa
no centro da cratera calcinada,
eterno purgatório onde nascem
as cores do meu arco-íris.

  

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






06 fevereiro 2019

marianne moore / que contam os anos?





     Que conta a nossa inocência,
que conta a culpa? Tudo é
     nu, ninguém escapa. E vem de onde
a coragem: a pergunta sem resposta,
a dúvida decidida –
clamando muda, escutando surda – que
na desgraça, mesmo morte,
          os outros incentiva
          e quando sai vencida, agita

     na alma fortaleza? Sagaz
e feliz é aquele que
     aceita a mortalidade
e no cativeiro se ergue acima
da sua posição como
o mar face ao abismo, lutando
por ser livre sem poder,
          achando, na rendição,
          a sua resiliência.

     Condigno, pois, é aquele
que forte sente. Até o pássaro
      cantando se espevita
e todo se endireita. Embora cativo,
declara em canto firme
ser grosseira a satisfação,
ser tão pura a alegria.
          A mortalidade é isto,
          a eternidade é isto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018






05 fevereiro 2019

wislawa szymborska / o céu





Era por aí que se devia ter começado: o céu.
janela sem parapeito, sem caixilho, sem vidros.
A abertura e nada para além dela,
de par em par aberta todavia.

Não tenho que esperar uma noite calma
nem de levantar a cabeça
para olhar o céu.
O céu tenho-o à mão,
atrás de mim, nas minhas pálpebras.
Hermeticamente o céu me envolve
e me levanta do chão.

Nem mesmo os mais altos cumes
ficam mais perto do céu
que os vales profundos.
Em lugar algum ele existe mais
que nalgum outro.
E em rigor tão coberta de céu está a nuvem
como o túmulo.
Tão do céu é a toupeira
como a coruja de asas lestas.
E coisa que caia em precipício
cai do céu para o céu.

Soltos, fluidos, rochosos,
coruscantes e etéreos
abas de céu, sobras de céu,
sopros de céu e medas.
O céu é omnipresente
até nas escuridões sob a pele.

Eu como o céu, expulso o céu.
Eu sou armadilha na armadilha,
o habitante habitado,
o possuído da posse,
pergunta em resposta a uma pergunta.

Dividir em terra e céu
não é a maneira certa
de pensar nesta unidade.
Permite-me apenas viver
em morada mais exacta,
mais rápida de encontrar
se eu fosse procurada.
Os meus sinais particulares
são o fascínio e o desespero.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







04 fevereiro 2019

juan luis panero / numa estação de madrugada




Recorda-os,
antes que o álcool os leve
ou a memória os maquilhe e confunda,
antes que sejam sonhos esquecidos,
as marcas de uma pele noutra pele pagadas.

Recorda-os,
além da bruma e da noite,
sob as luzes de néon fantasmagóricas,
diante das vias de metal silencioso,
sem comboios, sem despedidas nem destinos.

Recorda-os,
porque não te esperavam,
e nada te pediam, nem tu a eles também,
porque tudo era inútil, absurdo e desoportuno,
derrotada ternura e sombra da tua vida.

Recorda-os,
e beija outra vez aqueles lábios,
a sua alagada respiração, a língua surpreendida,
a sua frágil matéria húmida,
aqueles lábios que a tua boca imagina.

Recorda-os.


juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003








03 fevereiro 2019

bernardo soares / chove muito, mais, sempre mais...



Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma […] que vai desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.

Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela.

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição sinto-me matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






02 fevereiro 2019

marguerite duras / textos secretos




Vais pensar que fui eu que te escolhi. Eu. Tu.
Tu que és a cada instante o todo de ti mesmo em
relação mim, e é assim seja o que for que fize-
res, por mais longe ou perto que estejas da minha
esperança.



marguerite duras
textos secretos
o homem atlântico
trad. tereza coelho
quetzal
1999







01 fevereiro 2019

inês lourenço / dois cimbalinos escaldados



Não sei, meu amigo, o que
irradiava mais calor, se
a chávena escaldada, se
o cimbalino fervente, se
as conversas sobre livros de poesia
que nesse tempo ainda
acreditávamos ser a maior
razão.

Curto, normal, cheio
o cimbalino, esse negro odor
com moldura branca
numa mesa de café, na cidade
onde habitávamos desde sempre.


inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015