11 fevereiro 2019

luís miguel nava / rapazes




Foi há cerca de um ano que eu
os vi, onde o granito e a luz são consanguíneos.

Seguiam abraçados um
ao outro, o pensamento posto no amoroso
lençol de que era na mão deles
o guarda-chuva uma antecipação.



luís miguel nava
poesia completa (1979-1994)
rebentação
publicações dom quixote
2002






10 fevereiro 2019

bernardo soares / a leitura dos jornais, sempre penosado ponto de ver estético,




A leitura dos jornais, sempre penosa do ponto de ver estético, é-o frequentemente também do moral, ainda para quem tenha poucas preocupações morais.

As guerras e as revoluções — há sempre uma ou outra em curso — chegam, na leitura dos seus efeitos, a causar não horror mas tédio. Não é a crueldade de todos aqueles mortos e feridos, o sacrifício de todos os que morrem batendo-se, ou são mortos sem que se batam, que pesa duramente na alma: é a estupidez que sacrifica vidas e haveres a qualquer coisa inevitavelmente inútil. Todos os ideais e todas as ambições são um desvairo de comadres homens. Não há império que valha que por ele se parta uma boneca de criança. Não há ideal que mereça o sacrificio de um comboio de lata. Que império é útil ou que ideal profícuo? Tudo é humanidade, e a humanidade é sempre a mesma — variável mas inaperfeiçoável, oscilante mas improgressiva. Perante o curso inimplorável das coisas, a vida que tivemos sem saber como e perderemos sem saber quando, o jogo de dez mil xadrezes que é a vida em comum e luta, o tédio de contemplar sem utilidade o que se não realiza nunca (...) — que pode fazer o sábio senão pedir o repouso, o não ter que pensar em viver, pois basta ter que viver, um pouco de lugar ao sol e ao ar e ao menos o sonho de que há paz do lado de lá dos montes.

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982







09 fevereiro 2019

maria gabriela llansol / LXII. dedico




a melodia é para a árvore e folhas; a leitura, a escrita, para o rosto entre ambas; o texto, ao entrar na árvore, sai paisagem. Resta-me a dor de aprender a identificar.



maria gabriela llansol
amigo e amiga
curso de silêncio de 2004
assírio & alvim
2006







08 fevereiro 2019

jorge velhote / fria é a água na escuridão




.11.

Na noite cintilam entre paredes
os despojos da pele e uma labareda
devastando os ossos dispara
a cegueira.
Infinitamente desce no teu olhar
apenas uma gota de luz
que varre das pedras a poeira inútil
a dor e a loucura.



jorge velhote
âmago
edições sem nome
2018






07 fevereiro 2019

fernando pinto do amaral / escotomas



2.
Depois da tempestade é mais difícil
continuar fiel ao fogo,
encontrar um refúgio nas cinzas
deste vulcão silencioso. O tempo
devora a minha voz e adormece
todo o amor, todo o medo,
sob o peso de um grito. Não resisto
à luz que se despede
do coração doente – sei apenas
que a verdade se move entre a poeira
de cada corpo, à espera de rezar
uma oração feliz e tenebrosa
no centro da cratera calcinada,
eterno purgatório onde nascem
as cores do meu arco-íris.

  

fernando pinto do amaral
às cegas
relógio de água
1997






06 fevereiro 2019

marianne moore / que contam os anos?





     Que conta a nossa inocência,
que conta a culpa? Tudo é
     nu, ninguém escapa. E vem de onde
a coragem: a pergunta sem resposta,
a dúvida decidida –
clamando muda, escutando surda – que
na desgraça, mesmo morte,
          os outros incentiva
          e quando sai vencida, agita

     na alma fortaleza? Sagaz
e feliz é aquele que
     aceita a mortalidade
e no cativeiro se ergue acima
da sua posição como
o mar face ao abismo, lutando
por ser livre sem poder,
          achando, na rendição,
          a sua resiliência.

     Condigno, pois, é aquele
que forte sente. Até o pássaro
      cantando se espevita
e todo se endireita. Embora cativo,
declara em canto firme
ser grosseira a satisfação,
ser tão pura a alegria.
          A mortalidade é isto,
          a eternidade é isto.




marianne moore
o pangolim e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d´água
2018






05 fevereiro 2019

wislawa szymborska / o céu





Era por aí que se devia ter começado: o céu.
janela sem parapeito, sem caixilho, sem vidros.
A abertura e nada para além dela,
de par em par aberta todavia.

Não tenho que esperar uma noite calma
nem de levantar a cabeça
para olhar o céu.
O céu tenho-o à mão,
atrás de mim, nas minhas pálpebras.
Hermeticamente o céu me envolve
e me levanta do chão.

Nem mesmo os mais altos cumes
ficam mais perto do céu
que os vales profundos.
Em lugar algum ele existe mais
que nalgum outro.
E em rigor tão coberta de céu está a nuvem
como o túmulo.
Tão do céu é a toupeira
como a coruja de asas lestas.
E coisa que caia em precipício
cai do céu para o céu.

Soltos, fluidos, rochosos,
coruscantes e etéreos
abas de céu, sobras de céu,
sopros de céu e medas.
O céu é omnipresente
até nas escuridões sob a pele.

Eu como o céu, expulso o céu.
Eu sou armadilha na armadilha,
o habitante habitado,
o possuído da posse,
pergunta em resposta a uma pergunta.

Dividir em terra e céu
não é a maneira certa
de pensar nesta unidade.
Permite-me apenas viver
em morada mais exacta,
mais rápida de encontrar
se eu fosse procurada.
Os meus sinais particulares
são o fascínio e o desespero.



wislawa szymborska
paisagem com grão de areia
trad. júlio sousa gomes
relógio d’água
1998







04 fevereiro 2019

juan luis panero / numa estação de madrugada




Recorda-os,
antes que o álcool os leve
ou a memória os maquilhe e confunda,
antes que sejam sonhos esquecidos,
as marcas de uma pele noutra pele pagadas.

Recorda-os,
além da bruma e da noite,
sob as luzes de néon fantasmagóricas,
diante das vias de metal silencioso,
sem comboios, sem despedidas nem destinos.

Recorda-os,
porque não te esperavam,
e nada te pediam, nem tu a eles também,
porque tudo era inútil, absurdo e desoportuno,
derrotada ternura e sombra da tua vida.

Recorda-os,
e beija outra vez aqueles lábios,
a sua alagada respiração, a língua surpreendida,
a sua frágil matéria húmida,
aqueles lábios que a tua boca imagina.

Recorda-os.


juan luis panero
poemas
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2003








03 fevereiro 2019

bernardo soares / chove muito, mais, sempre mais...



Chove muito, mais, sempre mais... Há como que uma […] que vai desabar no exterior negro...

Todo o amontoado irregular e montanhoso da cidade parece-me hoje uma planície, uma planície de chuva. Por onde quer que alongue os olhos tudo é cor de chuva, negro pálido.

Tenho sensações estranhas, todas elas frias. Ora me parece que a paisagem essencial é bruma, e que as casas (é que) são a bruma que a vela.

Uma espécie de anteneurose do que serei quando já não for gela-me corpo e alma. Uma como que lembrança da minha morte futura arrepia-me de dentro. Numa névoa de intuição sinto-me matéria morta, caído na chuva, gemido pelo vento. E o frio do que não sentirei morde o coração actual.



fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.I
ática
1982






02 fevereiro 2019

marguerite duras / textos secretos




Vais pensar que fui eu que te escolhi. Eu. Tu.
Tu que és a cada instante o todo de ti mesmo em
relação mim, e é assim seja o que for que fize-
res, por mais longe ou perto que estejas da minha
esperança.



marguerite duras
textos secretos
o homem atlântico
trad. tereza coelho
quetzal
1999







01 fevereiro 2019

inês lourenço / dois cimbalinos escaldados



Não sei, meu amigo, o que
irradiava mais calor, se
a chávena escaldada, se
o cimbalino fervente, se
as conversas sobre livros de poesia
que nesse tempo ainda
acreditávamos ser a maior
razão.

Curto, normal, cheio
o cimbalino, esse negro odor
com moldura branca
numa mesa de café, na cidade
onde habitávamos desde sempre.


inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015








31 janeiro 2019

julio martínez mesanza / quando regressa maio




Quando regressa Maio esqueço sempre
que o inverno me dizimou a hoste. Sonho
com sangue quando Maio me faz jovem
e não conto com o número de mulas
doentes, nem me lembro dos cavalos
que não suportarão outra campanha.
Sou em Maio o meu ser que não detesto
e não essa tardia sombra que medita.
Não me reconheço em Maio. Multiplico
com energia as ofensas e provoco
ao justo e ao injusto, ao estrangeiro,
ao da terra, ao aliado. Mando cartas
injuriosas para todos os lados,
entusiasmo-me quando me devolvem
a injúria e pronta guerra aceitam.
É melhor em Maio sermos insolentes
do que arrastarmos a fama nos torneios.



julio martínez mesanza
trípticos espanhóis 1º.
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
1998






30 janeiro 2019

adonis / seis notas do lado do vento




2

                O abismo ensinou-me que não podemos compreender um problema a não ser por intermédio de um outro problema e através dele, como se o homem não avançasse indo do obscuro para a luz, como é hábito pensar, mas dirigindo-se para uma outra espécie de obscuro, menos espesso. Essa diferença entre duas obscuridades, chamamos-lhe luz. Felizmente para o homem e para a poesia, não existe claridade suficiente para apagar o obscuro no homem e nas coisas. Se a claridade se tornasse senhora do mundo, a vida seria alterada, e a poesia desfeita.


adonis
arco-íris do instante
antologia poética
tradução de nuno júdice
dom quixote
2016