13 janeiro 2019

s. kierkegaard / o sol brilha




O sol brilha, entrando tão bela e vivamente no meu quarto. A janela do lado está aberta; na rua, tudo está quieto. É domingo à tarde. Ouço claramente uma cotovia, lá fora, diante da janela num dos pátios vizinhos, lançando os seus trinados – lá fora, diante da janela onde vive a rapariga bonita. Ao longe, de uma rua distante, ouço um homem a apregoar camarão. O ar está tão quente e, todavia, toda a cidade está como morta. Então, lembro-me da minha juventude e do meu primeiro amor – nesse tempo, eu suspirava por; agora, só suspiro pelo meu primeiro suspiro por. Que é a juventude? Um sonho. Que é o amor? O conteúdo do sonho.



s. kierkegaard
diapsalmata
trad. de bárbara silva, m. jorge de carvalho,
nuno ferro e sara carvalhais
assírio & alvim
2011









12 janeiro 2019

tiago fabris rendelli / a morte dos séculos




meu amor, ninguém conhece o seu próprio universo
nem sabe qual ponto de pele
será o epicentro da sucessão de fatos
relativos ao nosso próprio desaparecimento.

meu amor, caminhar sem rumo é em si algum destino
por isso não temas a perdição da noite
ou o vasto silêncio dos lugares abandonados
tudo possui o seu bocado de milagre
e quando cultivamos o tempo
florescemos eternidades.

meu amor, não chores pelas secas
pois a água nunca acaba
ela se renova em chuva
e leva a vida a passear por novos campos.

meu amor, temos 14 bilhões de anos
e duraremos menos de um século
por isso celebres a existência
não te esqueças de que nascemos diariamente
seja ao abrir os olhos pela manhã
seja na descoberta de uma nova estrela
ou no choro do recém-nascido
estamos em todos os instantes.

meu amor, somos o princípio e o fim
aquilo que se renova pelas eras
o que não se destrói
o assassino e a vítima de mãos dadas
o desespero entrelaçado com o riso
a dor do parto e o orgasmo
futuro, passado, presente
somos, meu amor
o que ainda está por vir
os mortos enterrados
as crianças que serão geradas
e o medo que um dia termina.


tiago fabris rendelli
& wladimir vaz
terra seca
editora urutau
2017









11 janeiro 2019

ruy cinatti / enigma




A noite, o vácuo, o nevoeiro
aceso em minhas lucilentas cinzas.
O pássaro veloz que se despenha
nas águas, e um peixe abica
e nele estrebucha, de possesso,
arrebatado ainda e… – ó conquistas!
Maior avanço, ora supões causas
inadmissíveis, conquanto exactíssimas
como o quadrilátero entreaberto
num círculo – acme da vida.
O voo segue e chega-se aos astros.
Ícaro cai, os mares ressuscitam-no.

30/6/77



ruy cinatti
56 poemas
de paisagens
relógio d´agua
1981







10 janeiro 2019

jordi doce / ensaio para uma fuga




Nesta hora duvidosa que desce
entre o azul e a cinza,
com quietação de neblina e ar
encerrado, neste jardim
de inanimadas sombras
onde a humidade sabe a terra
e desenvolvidos cansaços,
deixei os olhos.

Como aquele que em terra de ninguém,
aceita uma trégua fictícia
e procura no cansaço uma certeza,
olhei em penumbra
quanto se abriga ao olhar,
quanto sustém inadvertido
o peso de uns olhos
que duvidam ou interrogam.

Conheço as razões deles: são as minhas.
Como eu, procuram
um espaço para o desejo,
um lugar de fugas e assombros
na terra de ninguém
do ar. Como eu,
chegam ao seu destino
ao demorá-lo.


jordi doce
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







09 janeiro 2019

flor campino / era tão branca a vila




I
Era tão branca a vila
que cegava.
Andaste os labirintos
da sua cal e acaso.
Com fitas ocres
enleando os muros,
respiram os teus ombros
a brancura, a marca
azul do ar.

II
Do sul te veio a ausência.
Lenços brancos
as clareiras desprendem, invioláveis,
por onde a luz
captura o sono
e esplêndida
te deixa, e solitária.




flor campino
(a aresta das folhas, afrontamento, porto 2000)
da outra margem
antologia de poesia de autores portugueses
organização de maria armandina maia
instituto camões
2001








08 janeiro 2019

josé ángel cilleruelo / cão de morto




Contarei as sílabas, depois os versos
Até catorze, a ninguém direi que morreu;
Serei parco em imagens, procurarei
A intensidade da canção primitiva.
A ninguém direi que dentro de mim morreu;
Fingirei que existe ainda algo
Belo por escrever. Inventarei frases
Com a memória dos que sentem ainda.
Um pouco de interesse me resta, vida
Também, ainda que não a solicite muito;
Quase não leio e já suporto só
Alguns romancistas americanos.
Contarei sílabas, acentos, histórias,
Mas a ninguém revelarei o meu embuste.



josé ángel cilleruelo
trípticos espanhóis 2º
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000







07 janeiro 2019

konstandinos kavafis / quanto puderes




E se não podes fazer a tua vida como a queres,
pelo menos procura isto
quanto puderes: não a aviltes
na muita afinidade com o mundo,
nos muitos movimentos e conversas.

Não a aviltes levando-a,
passeando-a frequentemente e expondo-a
em relações e convívios
da parvoíce do dia-a-dia,
até se tornar como uma estranha pesada.



konstandinos kavafis
os poemas
I (1905-1915)
trad. joaquim manuel magalhães e
nikos pratsinis
relógio d´água
2005







06 janeiro 2019

valter hugo mãe / preparei uma festa no coração




preparei uma festa no coração
as veias penduradas como
gambiarras corpo fora

pedi que viesses esperei que viesses
mas a alegria que inventei era só um
modo de ir embora



valter hugo mãe
publicação da mortalidade
poesia reunida
segundo livro, terceira parte
pornografia erudita
assírio & alvim
2018









05 janeiro 2019

paulo da costa domingos / pião




Num flagrante retorno dramático
ao fim-de-semana, àquilo que é
excepcional, de fazer inveja
a Cupido; na roda onde
ninguém pode ganhar mais
do que aquilo que outro perde
em magníficas jogadas de sémen;
se o Belo é o pai da Beleza,
resta descobrir a sua mãe
incógnita. Deixa, tira, põe.



paulo da costa domingos
a céu aberto
averno
2017








04 janeiro 2019

pedro tamen / fontes




Na fonte, a terra
dá-se à terra.
A água é um abraço
Que se dá a beber
E que nos cerra.



pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982











03 janeiro 2019

jorge de sena / humanidade




Na tarde calma e fria que circula
por entre os eucaliptos e a distância,
olhando as nuvens quase nada rubras
e a névoa consentida pelos montes,
névoa não subindo por não ser
fumo da vida que trabalha e teima,
e olhando uma verdura fugitiva
que a noite no céu queima tão depressa,
esqueço-me que há gente em cada parte,
gente que, de sempre, sofre e morre,
e agora morre mais ou sofre mais,
esqueço-me que a esperança abandonada,
a não ser de ninguém, é sempre minha,
esqueço-me que os homens a renovam,
que o fumo dos seus lares sobe nos ares…
Esqueço-me de ouvir cheirar a Terra,
Esqueço-me que vivo… E anoitece.



jorge de sena
coroa da terra (1946)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972






02 janeiro 2019

carlos de oliveira / praias






               Dorme, flutua numa espécie de lago. A respiração dos seios empurra contra as paredes do quarto, em ondas lentas, o meu corpo afogado. Não consigo dormir.

                Esperarei toda a noite nessas praias de cal, desertas, verticais.



carlos de oliveira
sobre o lado esquerdo
trabalho poético
livraria sá da costa editora
1998








01 janeiro 2019

charles bukowski / que podes fazer?




há sempre alguém que nos corte
a madeira,
que fale de
Deus,
há sempre alguém
que nos mate a carne,
que desentupa a sanita,
há sempre alguém para te
enterrar,
há sempre animais com
olhos lindos,
e há sempre homens
como o Stanley,
inclinados sobre mim
e dizendo numa voz doce:
«sabias que o Saroyan
no fim de carreira
tinha pessoas
a escrever por ele e que ele
lhes dava vinte e cinco
por cento?»
isto era para me fazer sentir
original,
para me fazer sentir bem por ser um escritor
faminto quando as rejeições
chegavam em números recorde.
 não me fez sentir
melhor.

há sempre alguém ou algo
que faz
com que te sintas pior.

há sempre o cão morto
na auto-estrada.
há sempre um nevoeiro cheio
de lâminas
afiadas.

há sempre Cristo bêbado
na taberna com unhas
sujas.




charles bukowsky
os cães ladram facas
trad. rosalina marshall
alfaguara
2018