18 julho 2018

bob dylan / acho que estou a sair-me bem




Bem, não tenho a minha infância
Ou os amigos que outrora conheci
Não, não tenho a minha infância
Ou os amigos que outrora conheci
Mas ainda me resta a minha voz
Posso levá-la onde quer que vá
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

E nunca tive muito dinheiro
Mas seja como for ainda ando por aqui
Não, nunca tive muito dinheiro
Mas seja como for ainda ando por aqui
Muitas vezes me dobrei
Mas ainda nunca me submeti
Ei, ei, portanto acho que estou a siar-me bem

Infortúnio, oh infortúnio
Tenho infortúnio na mente
Infortúnio, oh infortúnio
Tenho infortúnio na mente
Mas o infortúnio do mundo, Senhor
É muito maior do que o meu
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

E nunca tive exércitos nenhuns
A saltar às minhas ordens
Não, não tenho exércitos
A saltar às minhas ordens
Mas não preciso de exércitos nenhuns
Arranjei um bom amigo
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

Têm-me dado pontapés e chicoteado e espezinhado
Têm tentado atingir-me tal como a ti
Têm-me dado pontapés e chicoteado e espezinhado
Têm tentado atingir-me tal como a ti
Mas enquanto o mundo continuar a rodar
Eu simplesmente também continuo a rodar
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem

Bem, a minha estrada pode estar cheia de pedras
As pedras podem ferir-me o rosto
A minha estrada ela pode estar cheia de pedras
As pedras podem ferir-me o rosto
Mas como algumas pessoas não têm estrada nenhuma
Têm de ficar no velho sítio do costume
Ei, ei, portanto acho que estou a sair-me bem





bob dylan
canções 1962-2001
volume 1 (1962-1973)
the times they are a-changin’
trad. angelina barbosa e pedro serrano
relógio d´água
2008








17 julho 2018

paulino lorenzo / bairro apagado




A rua dorme, é lenta e vem de muito longe,
de um ruído de pássaros curiosos que observaram
a pele de um coração, o meu. Que faço aqui?
Nada de novo, fumar, perder o tempo,
escutar o escuro chapinhar dos charcos,
resolver o poema com um último verso
calado frente ao aquário lúgubre de uns olhos.



paulino lorenzo
poesia espanhola, anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000









16 julho 2018

ruy cinatti / veneza




Os palácios alinham-se à beira d´água
e os degraus escondem-se nos fundos palustres.
Altas torres crescem, intervaladas,
e avançam, tetraédricas no céu.
Barcos à vela e algumas gôndolas
navegam silenciosas. De uma janela
um astro é lançado contra um remador…
As pombas esvoaçam em redor
e o tom mais nítido lembra o arco-íris…

6/12/76



ruy cinatti
56 poemas
de paisagens
relógio d´agua
1981







15 julho 2018

álvaro de campos / no fim de tudo dormir.



No fim de tudo dormir.
No fim de quê?
No fim do que tudo parece ser...,
Este pequeno universo provinciano entre os astros,
Esta aldeola do espaço,
E não só do espaço visível, mas até do espaço total.

s.d.


fernando pessoa
poesias de álvaro de campos
edições ática
1944










14 julho 2018

samuel beckett / os ossos de eco




asilo sob os meus passos este dia inteiro
os seus folguedos abafados enquanto a carne
                                                       [se desmorona
arrotando sem receio sem favor
percorrida a punitiva fileira da sensatez e
                                                              [insensatez
Tomados pêlos vermes por aquilo que são

1935




samuel beckett
poemas escolhidos
tradução de jorge rosa e armando da silva carvalho
dom quixote
1970








13 julho 2018

carlos drummond de andrade / consolo na praia




Vamos, não chores…
A infância está perdida.
A mocidade está perdida.
Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.
Não tentaste qualquer viagem.
Não possuis casa, navio, terra.
Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,
em voz mansa, te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

A injustiça não se resolve.
À sombra do mundo errado
murmuraste um protesto tímido.
Mas virão outros.

Tudo somado, devias
precipitar-te – de vez – nas águas.
Estás nu na areia, no vento…
Dorme, meu filho.



carlos drummond de andrade
65 anos de poesia
o jornal
1989






12 julho 2018

mário-henrique leiria / panoramas do brasil




Nos parques dormem mendigos
enrolados em jornal.
Os notívagos insectos,
crepitam e desabafam.
A neblina cobre a rua
obumbra as feições da lua,
faz dos transeuntes espectros.
Imerso em meus devaneios,
assobiando cantigas
que inda no berço aprendi,
eu sigo perambulando
vendo coisas espantosas
que não supunha existir.

Que fazem as negras
cingidas em postes
de iluminação?
Passei-lhes por perto
nenhuma me viu
estão obtusas
de tanta cachaça,
e desilusão.
São negras sedentas
famintas e nuas
chorando nas ruas,
trazendo no bucho
pecados alheios,
dormindo? Coitadas
pêlos escaminhos
e pelas sarjetas
dos templos sagrados
aonde ressoam
tranquilos e fartos
os gordos sicários
do meigo Jesus.

No botequim
a ruiva de henné
no colo do homem
ao qual explorava
com gesto fútil
às vezes sorria.
Na boca postiça
sorriam postiços
seus dentes de louça.
No meio da noite
é o pederasta,
tipo numeroso,
que acha os boêmios
em altos clamores
de tara mental.
Os que se aproximam,
desejam dinheiro
para a bacanal.

Um guarda-noctruno,
obeso e cafuzo,
em roncos suínos
de besta saciada,
tirava cochilos
num carro esquecido
que à beira da estrada
dormia também.
De madrugada,
meio à neblina,
e que se acirram
e recrudescem
trôpegos passos
soturnos ecos
da dura faina
das prostitutas.

Gatos que vivem ao léu
dão uma nota de instinto
fornicando nos telhados
e canteiros desfolhados
de madames irascíveis.
De vez em quando o berreiro
dos automóveis que passam
conduzindo mariposas
para o amor dos milionários.
Depois retorna o silêncio
onde seus passos explodem
como flores apagadas.
O mundo é só, quem te espera?
Os bares não têm amigos,
mulheres não têm sorrisos,
as estrelas feneceram
na madrugada sem fim.
Só globos de luz vegetam
boiando na escuridão
como que vindos de longe,
fazendo as vezes de estrelas
luzeiros do engenho humano,
iluminando a sarjeta
onde rola a perdição.

E quando amanhece
e o dia estremece
saltando nos céus,
ninguém reconhece
as coisas que vê.
O mundo girando,
os ricos gozando,
os pobres penando,
os párias morrendo…
a vida correndo…

Alguns ressonando
em camas de pena,
em leitos de pedra
em leitos de pedra
vão outros dormir.

E o mundo girando
a vida correndo
e os deuses sorrindo
sorrindo e chorando
das coisas que vêem.
E o mundo girando
e o dia passando
e a noite chegando
e os homens gritando
de fome e de dor.




mário-henrique leiria
obras completas
poesia
e-primatur
2018


11 julho 2018

al berto / salsugem




5
o mar arrasta
depois atira o corpo para fora do sonho que me roubou
e a noite
a violenta noite das marés arremessa contra a cama
velhas madeiras restos de vestuário pedaços de corpos
envoltos no coral… rostos
órgãos corroídos pela ferocidade dos peixes

qualquer porto era bom para embarcar
fugir às tribos e ao sol impiedoso
ir em busca de sossego noutras ilhas nocturnas
outros desertos onde o amor se revela e os olhos ficam atentos
ao movimento luminoso dos corpos atravessando
os dias lentos sem regresso

queimava as horas de viagem a esmagar saliva
aprendia a sonâmbula fala dos golfinhos
os dedos enlouquecidos pelas amarras
gritava… «Ó Fogo de Santelmo! Ajudai! Ajudai!»

e da insuspeita travessia para sul
vinha a poeira da noite com o embriagante perfume das orquídeas
e a ilusão das suaves índias que não conheço



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








10 julho 2018

amalia bautista / desconheço ainda que crime fiz




Desconheço ainda que crime fiz,
o que estou a pagar com este exílio.
Lembro-me apenas de tecer a teia
entre os ramos de uma frondosa árvore
que crescia no centro do jardim.
Estava cheia de frutos dourados
e pelo seu tronco andava uma serpente.



amália bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013








09 julho 2018

herberto helder / poemacto




I
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.
Uma vara canta branco.
Uma cidade canta luzes.
Penso agora que é profundo encontrar as mãos.
Encontrar instrumentos dentro da angústia:
clavicórdios e liras ou alaúdes
intencionados.
Cantar rosáceas de pedra no nevoeiro.
Cantar o sangrento nevoeiro.
O amor atravessado por um dardo
que estremece o homem até às bases.

Cantar o nosso próprio dardo atirado
ao bicho que atravessa o mundo.
Ao nome que sangra.
Que vai sangrando e deixando um rastro
pela culminante noite fora.
Isso é o nome do amor que é o nome
do canto. Canto na solidão.
O amor obsessivo.
A obsessiva solidão cantante.
Deito-me, e é enorme. É enorme levantar-se,
cegar, cantar.
Ter as mãos como o nevoeiro a arder.

As casas são fabulosas, quando digo:
casas. São fabulosas
as mulheres, se comovido digo:
as mulheres.
As cortinas ao cimo nas janelas
faíscam como relâmpagos. Eu vivo
cantando as mulheres incendiárias
e a imensa solidão
verídica como um copo.
Porque um copo canta na minha boca.
Canta a bebida em mim.
Veridicamente, eu canto no mundo.

Que falem depressa. Estendam-se
no meu pensamento.
Mergulhem a voz na minha
treva como uma garganta.
Porque eu tanto desejaria acordar
dentro da vossa voz na minha boca.
Agora sei que as estrelas são habitadas.
Vossa existência dura e quente
é a massa de uma estrela.
Porque essa estreia canta no sítio
onde vai ser a minha vida.

Queimais as vossas noites em honra
do meu amor. O amor é forte.
Que coisa forte que é a loucura.
Porque a loucura canta minada de portas.
Nós saímos pelas portas, nós
entramos para o interior da loucura.
As cadeiras cantam os que estão sentados.
Cantam os espelhos a mocidade
adjectiva dos que se olham.
Estou inquieto e cego. Canto.
Ao fundo canta-me a morte.
É um canto absoluto.

Imagino o meu corpo, uma colina.
Meu corpo escada de estrela.
Nata. Flecha. Objecto cantante.
Corpo com sua morte que canta.
Imagino uma colina com vozes.
Uma escada com canto de estrela.
Imagino essa espessa nata cantante.
Uma que canta flecha.
Imagino a minha voz total da morte.
Porque tudo canta e cantar é enorme.

Imagino a delicadeza. A subtileza.
O toque quase aéreo, quase
aereamente brutal.
Ser tocado pelas vozes como ser ferido
pelos dedos, pelos rudes cravos
da planície.
Ser acordado, acordado.
Porque cantar é um subterrâneo.
Depois é um pátio.
Imagino que as vozes são escadas.
Vozes para atingir o canto.
O canto é o meu corpo purificado.

Porque o meu corpo tem uma sua morte
tocada incendiariamente.
A morte — diz o canto — é o amor enorme.
É enorme estar cego.
Canta o meu grande corpo cego.
Reluzir ao alto pelo silêncio dentro.
O silêncio canta alojado na morte.
Deito-me, levanto-me, penso que é enorme cantar.


herberto helder
poesia toda
poemacto
assírio & alvim
1996








08 julho 2018

fernando pessoa / deixei de ser aquele que esperava,




Deixei de ser aquele que esperava,
Isto é, deixei de ser quem nunca fui...
Entre onda e onda a onda não se cava,
E tudo, em ser conjunto, dura e flui.

A seta treme, pois que, na ampla aljava,
O presente ao futuro cria e inclui.
Se os mares erguem sua fúria brava
É que a futura paz seu rastro obstrui.

Tudo depende do que não existe.
Por isso meu ser mudo se converte
Na própria semelhança, austero e triste.

Nada me explica. Nada me pertence.
E sobre tudo a lua alheia verte
A luz que tudo dissipa e nada vence.

10-2-1933



fernando pessoa
poesias inéditas (1930-1935)
ática
1955