10 fevereiro 2018

herberto helder / elegia múltipla




IV
A colher de súbito cai no silêncio da língua.
Paro com a gelada imagem do tempo nos sentidos
puros. E sei que não é uma flor aberta
ou a noite cercada de águas extremas.
Paro por esta monstruosa,
ingénua força de uma morte.
— A colher envolvida pelo silêncio extenuante
da minha boca, da minha vida.

Que faço? Bem sei como se alimenta um homem,
e tímido e arguto
alimenta a sua irónica inspiração solar,
a inocente astronomia
de ossos e estrelas, veias e flores
e órgãos genitais —
para que tudo se construa docemente,
com as mulheres sentadas nos seus vestidos coalhados,
sorrindo fixamente como as crianças na lírica,
tenebrosa densidade da carne.

A colher cheia de alimento. Era um jogo vivo,
manso, ponderado — por certo
de uma beleza confusa e evocativa.
Eis: sou um homem que instante a instante
ganhava um sabor de perene
sentido, uma duração de sombra extasiada,
laboriosa, inclinada no grave centro
da primavera — a sombra
das minhas mãos.

A colher subia como um instrumento da criação,
firme subia nos dedos
como que invocando, unindo os fragmentos
do espírito,
a mímica na sugerida integridade
da pessoa
colocada na doce integridade do tempo.
Mas paro. Cai no silêncio da língua
a colher que era — quem sabe? — música,
intimidade, sinal fortuito
de uma essência, de um génio interior.

O puro roer devagar roerá
a colher na mão e a boca na colher,
e no sangue imóvel o pudor da imagem onde
coagulava a leve espessura das casas. Essas que ardiam
na assimetria festiva e sagaz das invenções.
                                                                  — Cai
no silêncio da língua a colher tão brusca.



herberto helder
poesia toda
a colher na boca
assírio & alvim
1996





09 fevereiro 2018

andré breton / rano raraku





Como o mundo é belo
A Grécia nunca existiu
Não passarão
O meu cavalo acha a ração na cratera
Homens-pássaros remadores arqueados
Voaram-me em volta da cabeça porque
Também sou eu
Quem lá está
Atolado a três quartos
A troçar dos etnólogos
Na amena noite do Sul
Não passarão
A planura não tem fim
Quem se destaca é risível
As altas imagens caíram.



andré breton
Xénophiles (1948)
poemas
trad. de ernesto sampaio
assírio & alvim
1994






08 fevereiro 2018

alexandre o'neill / em pleno azul




Com horror mal disfarçado
sincero desgosto (sim!)
lágrima azul aflita
mão crispada de piedade
vêem-me passar cantando
calamidades desastres
impossíveis de evitar
as mães
                as minhas a tua
as que estropiam ternamente os filhos
para monótono e prudente
avanço da família

E quando paro e faço a propaganda
dos lugares mais comuns da poesia
há um terror quase obsceno
nos seus olhos maternais

Então prometo congressos
em pleno azul

Prometo uma solução
em pleno azul

Prometo não fazer nada
em pleno azul

sem consultar o «bureau»
em pleno azul

Visivelmente sossegadas
é a hora de não cumprir
de recomeçar cantando
calamidades desastres
ruínas por decifrar


*

Se eu não estivesse a dormir
perguntaria aos poetas
A que horas desejam que vos acorde?

Vamos decifrar ruínas
identificar os mortos
dormir com mulheres reais
denunciar os traidores
e atraiçoar a poesia
envenenada nas palavras
que respiram ausência podre
vamos dizer sem maiúsculas
o amor a vida e a morte

                *

E as mães
onde estão elas?

As mães rezam as mães
cosem farrapos de dor
as mães gritam
choram
uivam
no espesso rio de um sono
já quase só animal



alexandre o´neill
tempo de fantasmas 1951
poesias completas
assírio&alvim
2000






07 fevereiro 2018

amadeu baptista / os selos da lituânia




14

valha a verdade, estive sempre só
na adolescência. por isso, a escrita
serviu no desamparo para tomar
consciência de que há sempre uma voz
que recupera connosco dos inúmeros
desagravos que a vida vai fazendo
para além do limite suportável,
sendo que em tudo existe violência.
à música devo muito e ao cinema.
ao mar provavelmente devo tudo.
mas foi na escrita que sempre me revi
quando os grandes dissabores principiaram
a marcar-me na face sinais incontornáveis
de solidão e medo. ao meu redor
tudo me pedia que ficasse atento
a tudo quanto via. há um mistério
inquestionável que preservo e flui
para a memória e da memória chega.
é como um cadáver deitado à nossa frente
que não se pode explicar mas que podemos
ver por dentro, adivinhando
as manchas que lhe vão na alma
e tudo o que já foi e já sonhou
e teve como seu e está perdido, implacavelmente.
desse cadáver não sabemos nada,
quem é,
de onde veio,
para onde irá
em corpo ou espírito noutro tempo.
contudo, nos seus lábios ressequidos,
na boca cerrada e no olhar parado,
nos ombros sinuosos e nas despojadas mãos
está inscrito o fascínio do que é,
além do mais, notícia e expectativa
que no caos turbilhonante é um clamor.
tudo é deslumbramento, tudo deve
passar-se para os outros como se
o que é perseguido assinalasse
o decisivo momento da nossa epifania
e do nosso testemunho sobre a terra,
com a esperança e angústia de quem sabe
que nenhuma palavra é redentora
e um verso ou uma frase não nos salva
do que quer que seja. a escrita
é um incêndio ausente
e nessa ausência
só é possível ressuscitar dos mortos.



amadeu baptista
caudal de relâmpagos
antologia pessoal 1982-2017
edições esgotadas
2017





06 fevereiro 2018

jorge aguiar oliveira / lançou-se aos vidros do rio




lançou-se aos vidros do rio
vestido de branco fermento.

Encontraram cadernos
na margem da vida com alguns
amores-perfeitos espalmados e

um verso escrito, como se fora nascer
de novo

andei procurando
o meu príncipe de Darque


jorge aguiar oliveira
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987





05 fevereiro 2018

inês lourenço / natureza morta




Risco na velha agenda, com
um traço ténue, o teu nome
e morada. É um risco
que nada anula e semelha
uma antiga lápide
que o tempo rasurou.



inês lourenço
o segundo olhar
companhia das ilhas
2015








04 fevereiro 2018

bernardo soares / e hoje, pensando no que tem sido a minha vida,




E, hoje, pensando no que tem sido a minha vida, sinto-me qualquer bicho vivo, transportado num cesto de encurvar o braço, entre duas estações suburbanas. A imagem é estúpida, porém a vida que defini é mais estúpida ainda do que ela. Esses cestos costumam ter duas tampas, como meias ovais, que se levantam um pouco em um ou outro dos extremos curvos se o bicho estrebucha. Mas o braço de quem transporta, apoiado um pouco ao longo dos dobramentos centrais, não deixa coisa tão débil erguer frustemente mais do que as extremidades inúteis, como asas de borboleta que enfraquece.

Esqueci-me que falava de mim com a descrição do cesto. Vejo-o nitidamente, e ao braço gordo e branco queimado da criada que o transporta. Não consigo ver a criada para além do braço e a sua penugem. Não consigo sentir-me bem senão — de repente — uma grande frescura de (…) daqueles varais brancos e nastros de (...) com que se tecem os cestos e onde estrebucho, bicho, entre duas paragens que sinto. Entre elas repouso no que parece ser um banco e falam lá fora do meu cesto. Durmo porque sossego, até que me ergam de novo na paragem.

5-4-1930


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982






03 fevereiro 2018

joaquim manuel magalhães / afastou-se alguns passos




Afastou-se alguns passos.
Olhou, tão vago, objectos
pousados em mesas, serras,
um balde, anilinas,
as sacas do estrume.

No funesto relvado nu
um fogo inútil colhe
seivas prestes a correr.

Mudo-me em ti. Corto
a paz doente da memória.
Fresas, escopros, devaneios.

Não escutas. O esmeril
lanceia cada olhar.
As mãos caem no abismo.



joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985





02 fevereiro 2018

eugénio de andrade / o anjo de pedra





Tinha os olhos abertos, mas não via.
O corpo todo era saudade
de alguém que o modelara e não sabia
que o tocara de maio e claridade.

Parava o seu gesto onde pára tudo:
no mistério das coisas por saber;
e ficara surdo e cego e mudo
para que tudo fosse grave no seu ser


eugénio de andrade
sião
organização e notas de
al berto, paulo da costa domingos e rui baião
lisboa
1987






01 fevereiro 2018

al berto / salsugem




I
Aqui te faço os relatos simples
dessas embarcações perdidas no eco do tempo
cujos nomes e proveito de mercadorias
ainda hoje transitam de solidão em solidão.



al berto
salsugem
o medo
assírio & alvim
1997








31 janeiro 2018

rui diniz / esboço





Sentados nas esplanadas da margem ouvíamos
o grito das civilizações. Havia semanas de silêncio
nas cidades litorais. Eu beberia entretanto cerveja
após cerveja e lia the Sun also rises. Que
mais escrevera este homem no seu solar
em Davim? Ninguém gostou de um poema que
que escrevi sobre o suave génio das gerações. E então
decidi partir para Bruxelas.

De todos os destinos o de Alice Toklas fora
o mais doloroso. Ela escrevera pacientemente
a biografia de todos os monges loucos e
por fim, enlouquecida pelos seus feitos, destruíra
os manuscritos enquanto dizia poemas de chaucer.

O seu olhar cintilava roxas estações, negros
campos de peste, livros e livros lidos pelas
insónias adiante.

E nós permanecemos sentados durante anos e
e anos nas esplanadas vazias, escrevendo loucamente
a incapacidade do tempo, a fúria dos dias e
das noites, a incansável desolação de cada palavra.

Repetimos o amor no interior das casas.
Recebemos um fulgor fácil das horas marítimas,
poemas vieram facilmente escritos aqui e ali.

Também da vida dissemos a alucinação exacta, os
motivos febris da inspiração, o ópio, o espaço
das flores de álcool, o olhar coincidindo
com a humilhação, os lábios distorcendo a mágoa
e a pouco e pouco já apenas o medo, o puro
medo de de repente em nós a voz se deteriorar.



rui diniz
ossuário
(ou: a vida de james whistler)
& etc
1977






30 janeiro 2018

vasco graça moura / recitativos




II
vou dizer ao camões que sobre os rios não
passarei mais a noite.

a escrita polui-se: refaz seu exercício
e ao fim é exercida em labirinto.

e os erros e o poder que se escondiam
no coração humano (as jogadas mais íntimas os trabalhos
preparatórios)
a corromper a claridade sobre
os rios.


vasco da graça moura
recitativos
poesia 1963/1995
quetzal editores
2007






29 janeiro 2018

pedro tamen / fazer horas





Adelina: a bruma que era ontem
voa – não é já. Foi-se tão prestes
como o João das Índias. E foi lá
que um pero se ficou – tão são,
tão nosso irmão.

Adelina: que é do candeeiro
que tu dizias fosco? A luz que deu
dá ora gosto. Por isso aqui te digo
que após a morte é um minuto grande
e outro umbigo.

E está-se, Adelina. Se como burro
dói, é vero, mas está-se.
Até que passe.



pedro tamen
princípio de sol
circulo de leitores
1982