15 novembro 2017

allen ginsberg / canção




O peso do mundo
                é amor.
Sob o fardo
                da solidão,
sob o fardo
                do descontentamento


                o peso,
o peso que carregamos
                é amor.


Quem pode negar?
                Toca
em sonhos
                o corpo,
constrói
                em pensamento
um milagre,
                angustia-se
na imaginação
                até nascer
no humano –


espreita pelo coração
                ardendo puramente –
pois o fardo da vida
                é amor,


carregamos porém o fogo
                com fadiga,
temos pois de descansar
nos braços do amor
                enfim,
temos de descansar nos braços
                do amor.


Não há descanso
                sem amor,
  não há sono
                sem sonhos
de amor –
loucos ou indiferentes
que sejamos, obcecados
                com anjos ou máquinas,
o derradeiro desejo
                é amor
– não pode amargar
                não se pode negar,
 não se pode conter
                se negado:


pesa de mais este peso


                – tem de se dar
sem rendimento
                como se dá
o pensamento
                na solidão
na suprema excelência
                do seu excesso.


Os corpos quentes
                brilham juntos
no escuro,
                move-se a mão
para o centro
                da carne,
treme a pele
                de felicidade
e vem-se a alma
                exuberante aos olhos –


sim, sim,
                era isso que eu
queria,
                que eu sempre quis,
eu sempre quis
                regressar
ao corpo
                onde eu nasci.


San Jose, 1954




allen ginsberg
uivo e outros poemas
trad. margarida vale de gato
relógio d’ água
2014





14 novembro 2017

roland barthes / um pequeno ponto no nariz



5.
O discurso de amor é, normalmente, um envelope liso colado à Imagem, uma luva macia que rodeia o ser amado. É um discurso devoto, cheio de bons sentimentos. Quando a Imagem se altera, dilacera-se a capa de devoção; um tremor modifica a minha própria linguagem. Ferido por uma motivação que surpreende, Werther encara de repente Carlota como uma espécie de comadre, incluindo-a no grupo das companheiras com quem ela tagarela (ela já não é a outra mas sim uma outra entre outras) e diz então desdenhosamente: «minhas mulherzinhas» (meine Weibchen). Uma blasfémia assoma bruscamente aos lábios do sujeito e vem destruir a bênção do apaixonado; está possesso de um demónio que fala pela sua boca, de onde saem, como nos contos de fadas, não flores, mas sapos. Horrível refluxo da Imagem. (o horror da destruição é a angústia de perder.)


roland barthes
fragmentos de um discurso amoroso
trad. isabel pascoal
edições 70
2017




13 novembro 2017

joaquim manuel magalhães / tão altas as primeiras árvores



Tão altas as primeiras árvores.
Vem a primavera destruí-las.
Fulgores fugazes os cabelos
à poeira do céu.

A alma pisada de caminhos,
o meigo revólver do olhar
vêem-te partir.
Por essa cidade, perdido
na suavidade da chuva.

Rasgam de novo as mãos
o inexpugnável nome
dos amantos, a flor secreta
que dizia a tua boca.

Tanta coisa de ti que nada sei.



joaquim manuel magalhães
segredos, sebes, aluviões
editorial presença
1985



12 novembro 2017

bernardo soares / a divina inveja



Sempre que tenho uma sensação agradável cm companhia de outros, invejo-lhes a parte que tiveram nessa sensação. Parece-me um impudor que eles sentissem o mesmo do que eu, que me devassassem a alma por intermédio da alma, unissonamente sentindo.

A grande dificuldade do orgulho que para mim oferece a contemplação das paisagens, é a dolorosa circunstância de já as haver com certeza contemplado alguém com um intuito igual.
A horas diferentes, é certo, e em outros dias. Mas fazem-me notar como seria acariciar-me e amansar-me com uma escolástica que sou superior a merecer. Sei que pouco importa a diferença, que com o mesmo espírito em olhar, outros tiveram ante a paisagem um modo de ver, não como, mas parecido com o meu.

Esforço-me por isso para alterar sempre o que vejo de modo a tomá-lo irrefragavelmente meu — de alterar, mentindo — o momento belo e na mesma ordem de linha de beleza, a linha do perfil das montanhas; de substituir certas árvores e flores por outras, vastamente as mesmas diferentissimamente; de ver outras cores de efeito idêntico no poente — e assim crio, de educado que estou, e com o próprio gesto de olhar com que espontaneamente vejo, um modo interior do exterior.

Isto, porém, é o grau ínfimo de substituição do visível. Nos meus bons e abandonados momentos de sonho arquitecto muito mais.

Faço a paisagem ter para mim os efeitos da música, evocar-me imagens visuais — curioso e dificílimo triunfo do êxtase, tão difícil porque o agente evocativo é da mesma ordem de sensações que o que há-de evocar. O meu triunfo máximo no género foi quando, a cena hora ambígua de aspecto e luz olhando para o Cais do Sodré nitidamente o vi um pagode chinês com estranhos guizos nas pontas dos telhados como chapéus absurdos — curioso pagode chinês pintado no espaço, sobre o espaço cetim, não sei como, sobre o espaço que perdura a abominável terceira dimensão.

E a hora cheira-me verdadeiramente a um ruído [...] e longínquo e com uma grande inveja de realidade...

s.d.


fernando pessoa
livro do desassossego por bernardo soares. vol.II
ática
1982



11 novembro 2017

irene lisboa / passeios



1
Não parar.
Nunca parar, nem para descobrir a água, nem
para ouvir as cigarras, o vento, o corvo des-
garrado.
Andar!
Tortuosos, solitários, fáceis caminhos, ir-vos sem-
pré seguindo.



irene lisboa
umdia e outro dia…
outono havias de vir
obras de irene lisboa
volume I poesia I
editorial presença
1991


10 novembro 2017

jorge de sena / como queiras, amor...



Como queiras, Amor, como tu queiras.
Entregue a ti, a tudo me abandono,
seguro e certo, num terror tranquilo.
A tudo quanto espero e quanto temo,
entregue a ti, Amor, eu me dedico.

Nada há que eu não conheça, que eu não saiba,
e nada, não, ainda há por que eu não espere
como de quem ser vida é ter destino.

As pequeninas coisas da maldade, a fria
tão tenebrosa divisão do medo
em que os homens se mordem com rosnidos
de malcontente crueldade imunda,
eu sei quanto me aguarda, me deseja,
e sei até quanto ela a mim me atrai.

Como queiras, Amor, como tu queiras.
De frágil que és, não poderás salvar-me.
Tua nobreza, essa ternura tépida
quais olhos marejados, carne entreaberta,
será só escárneo, ou, pior, um vão sorriso
em lábios que se fecham como olhares de raiva.
Não poderás salvar-me, nem salvar-te.
Apenas como queiras ficaremos vivos.

Será mais duro que morrer, talvez.
Entregue a ti, porém, eu me dedico
àquele amor por qual fui homem, posse
e uma tão extrema sujeição de tudo.

Como tu queiras, meu Amor, como tu queiras.

1959



jorge de sena
post-scriptum  (1960)
trinta anos de poesia
editorial inova
1972




09 novembro 2017

amalia bautista / a foto



Tira-me uma dessas fotos que tiras,
embacia a objectiva, desfoca
um pouco e mede mal a luz. Agora
que termina o dia não é difícil
eu sair favorecida. Que os traços
se suavizem, que todas as rugas
da alma e do contorno dos olhos
desapareçam e que quem me veja
pense que posso merecer a pena.
E sobretudo, que o que impressione
nessa foto não seja eu, que estou
ali, mas os teus olhos que a tiraram.


amália bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013






08 novembro 2017

jacques brel / a canção dos velhos amantes




Sem dúvida entre nós houve tormentas
Vinte anos de amor é o amor louco
Mil vezes fizeste as malas
Mil vezes levantei voo
E neste quarto sem berço
Não há móvel que não se lembre
Do roncar das nossas tempestades
Já nada era como antes
Tinhas perdido o gosto pela água
E eu o gosto pela conquista

                Meu amor
                Meu meigo meu terno meu maravilhoso amor
                Da madrugada clara até ao fim do dia
                Amo-te ainda sabes amo-te

Eu sei todos os teus sortilégios
Tu sabes todos os meus encantamentos
Foste-me prendendo de cilada em cilada
Fui-te largando de vez em quando
Sem dúvida tiveste alguns amantes
Havia que passar o tempo
Havia que gozar o corpo
E finalmente finalmente
Muito talento nos foi preciso
Para sermos velhos sem sermos adultos

                Meu amor
                Meu meigo meu terno meu maravilhoso amor
                Da madrugada clara até ao fim do dia
                Amo-te ainda sabes amo-te

E do tempo o maior cortejo
Maior tormento nos faz
Mas não será viver em paz
A pior das ciladas para os amantes
Sem dúvida choras um pouco menos cedo
Eu despedaço-me um pouco mais tarde
Protegemos menos os nossos mistérios
Damos menos azo ao acaso
Desconfiamos das águas mansas
Mas a doce guerra não tem fim


                Meu amor
                Meu meigo meu terno meu maravilhoso amor
                Da madrugada clara até ao fim do dia
                Amo-te ainda sabes amo-te






jacques brel
antologia poética
trad. eduardo maia
assírio & alvim
1997








07 novembro 2017

wislawa szymborska / contributo para as estatísticas



Em cem pessoas,

sabedoras de tudo melhor —
cinquenta e duas;

inseguras de cada passo —
quase todo o resto;

prontas para ajudar,
desde que não demore muito —
quarenta e nove;

sempre boas,
porque não conseguem de outra forma —
quatro, talvez cinco;

dispostas a admirar sem inveja —
dezoito;

constantemente receosas
de algo ou alguém —
setenta e sete;

aptas para a felicidade —
vinte e tal, quando muito;

individualmente inofensivas,
em grupo ameaçadoras —
mais de metade, com certeza;

cruéis,
por força das circunstâncias —
é melhor não sabê-lo,
nem aproximadamente;

com trancas na porta depois da casa roubada —
quase tantas como
aquelas que as têm, antes da casa roubada;

não levando nada da vida a não ser coisas —
quarenta,
embora preferisse estar enganada;

agachadas, doloridas
e sem lanterna no escuro —
oitenta e três,
mais tarde ou mais cedo;

dignas de compaixão —
noventa e nove;

mortais —
cem em cem.
Número, até agora, não sujeito a alterações.



wislawa szymborska
instante
trad. elzbieta milewska e sérgio neves
relógio d'água
2006






06 novembro 2017

yorgos seferis / flores do rochedo



Flores do rochedo diante do mar verde
com veias que me lembravam outros amores
ao brilharem na lenta queda de gotas,
flores do rochedo semblantes
que vieram quando ninguém falava e me falaram
que me deixaram tocá-los depois do silêncio
entre pinheiros loendros e plátanos.



yorgos seferis
esboço para um verão
poemas escolhidos
trad. de joaquim manuel magalhães
e nikos pratisinis
relógio d´água
1993





05 novembro 2017

ricardo reis / cada coisa a seu tempo tem seu tempo




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no Inverno os arvoredos,
Nem pela Primavera
Têm branco frio os campos.

À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.

À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo,

E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol).

Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem

Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.

E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade
Como quem compõe roupas
O outrora compúnhamos

Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos,
E há só noite lá fora.

30-7-1914




odes de ricardo reis
fernando pessoa
ática
1946




04 novembro 2017

vitorino nemésio / ser levado



Tivesse eu sido o que não fui,
Hoje era o mesmo projectado
António, Pedro, Lopo, Rui,
Quatro semblantes num só estado.

Mas serei, ainda que a morte
Me faça amiba, verme, pó:
Agulha a Deus, íntimo norte,
Resto de tudo uma alma só.

De eterno levo o tempo em frente
Como o boi leva o feno visto:
Mas ele é rês, e em mim vai gente:
Levado embora, existo, existo!



vitorino nemésio
o verbo e a morte
antologia poética
asa
2002




03 novembro 2017

vicente valero / voltar




Fui com o outro que eu fui, com o primeiro,
com o que não sabia fazer as pazes
nunca com a sua grande sede de saber mais… Queríamos
ver outra vez o sol que mal se via,
juntos, o sol fora de si, sem medo,
o fumo da tarde mais lenta sobre o mar:
ver outra vez o sol que mal se via.
E éramos dois agora e com sentido,
falando por falar, sozinhos, discorrendo
pelos caminhos brancos do passado,
brancos de luz ausente e doce, já de noite.
Vimos que o tempo é tudo o que vemos,
que tudo o que vemos se parece,
e um bosque junto ao mar não é somente um bosque,
é música também – e casa própria,
e ferida penetrante e muito espessa… Fomos
os dois pelos alcantis vermelhos
e secos do passado, juntos, sem as promessas
de então, lentamente. E lembro-me de que estava
tudo em desordem como no primeiro dia.



vicente valero
trípticos espanhóis (2º)
tradução de joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000