08 fevereiro 2017

nuno júdice / projecto




O objectivo é fugir. Atravessar as ruas
do tamanho de uma vida – para encontrar
do outro lado, o quê?, que mãos estendidas
até à parede em fogo do teu corpo? que
deus fugido dos pântanos de almas em
que ambos perdemos? Fugir, sim, até
onde não conseguimos mais do que estar
um com o outro, e os olhos se encontrem
– os meus com os teus olhos cuja cor
esqueci – e esse encontro, perfeito facto,
cresça de dentro do hemisfério que sobrou
de uma colheita estival (mas de rosas de
todo o ano, as mais efémeras).
  

nuno júdice
a fonte da vida
quetzal
1997




07 fevereiro 2017

silvia ugidos / traçado urbanístico


Tal como qualquer cidade
também nós escondemos
turvos itinerários, edifícios arruinados,
escuras vielas de rancor ou desejo,
arrabaldes de medo ou parques para o amor,
cantos em penumbra onde ocultar segredos,
praças que nunca visitamos
e aborrecidos museus onde expor lembranças
que não interessam a ninguém.
A nós
também nos habitam cidadãos terríveis:
funcionários do tédio,
mensageiros de moto levando para muito longe
o pequeno embrulho – primoroso e com laço –
dos remorsos.
Viajantes que passam por nós
com as suas malas a caminho de outros corpos
e sobretudo
transeuntes alheios a nossa própria vontade,
incivis e teimosos;
têm nomes ridículos
tal como os sentimentos amor, rancor ou medo
e especulam – como vulgares comerciantes –
com o preço
por metro quadrado do nosso coração.


silvia ugidos
poesia espanhola anos 90
trad. joaquim manuel magalhães
relógio d´água
2000



06 fevereiro 2017

antónio franco alexandre / os animais que escrevem




Os animais que escrevem, é sempre interessante, fez notar
o sensível destino dos nossos chacinados
companheiros. removemos a terra
de norte a sul, à procura de maravilhosas tocas,
o mar entrava pelo quarto do segundo andar,
dormíamos dentro um do um, acordados
pela manhã tracejada de néon,
no céu e terra do soalho.

cabe-me agora a descrição cuidada
do mundo incomodado em que vivemos: secretários
sentados à secretária, ídolos
das nove às onze,
civilidades de médio centro urbano, parque incluído,
a leve bomba que cai na cabeça dos outros,
e o grande buraco nocturno do mar
a sorver loas.

é um país, não há que errar, talhado
para a aventura de queimar
papéis ou gente,
tão desigual aos outros.
os primeiros autocarros passam,
a manhã levanta devagar a cabeça,
os pássaros, não esqueçamos os pássaros,
pousam, de viagem.


antónio franco alexandre
poemas
assírio & alvim
1996



05 fevereiro 2017

fernando pessoa / análise



Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco‑os de vista,
E nada fica em meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longemente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter‑me
Consciente de ti, nem a mim sinto.
E assim, neste ignorar-me a ver-te, minto
A ilusão da sensação, e sonho,
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que sinto que sonho o que me sinto sendo.
        Do sonho e pouco da vida.

12-1911


fernando pessoa
obra poética e em prosa. vol. I
lello
1986




04 fevereiro 2017

al berto / nunca mais o lembraremos



Um dia, em frente ao mar, ele pensou:

Se me apagasse neste preciso instante, o mundo pouco se importaria com isso.
No entanto, deixaria de ser o mesmo: seria um mundo com todas as coisas
que conheci e toquei, mas sem mim. E eu, algures na morte, é pouco provável
que levasse comigo alguma coisa do mundo. Seria um homem morto, sem mundo, definitivamente só.

Depois, não lhe agradou saber que o mundo, apesar da sua morte,
conservaria por muito tempo os vestígios da sua passagem. Desejou, uma vez mais,
que tudo o que escrevera até àquele instante se apagasse também,
e que do seu nome não restasse uma sílaba.

Pensou em tudo isto sem amargura, porque havia nele dois mistérios insolúveis:
viver e escrever. E ambos estavam tão intimamente ligados que, provavelmente,
se conseguisse desvendar um deles, o outro sê-lo-ia também.

Mas acontece que tinha tentado fazer da sua vida uma obra tão intensa
quanto a obra escrita. Por vezes diluíam-se uma na outra, confundiam-se,
tão próximas ou afastadas estavam. E tanto na vida como na escrita,
um mesmo desejo o animava: caminhar em direcção
à sabedoria última do silêncio - a memória total do mundo.

O pior é que sempre que avançava alguns passos na direcção certa, desiludia-se.
A harmonia com o mundo e com o seu próprio corpo continuava inacessível;
e outras ignorâncias surgiam, outras trevas o cegavam.
O que parecia estar perto, repentinamente, ficava fora do alcance.

Apesar de tudo, com o avançar lento da idade pressentia, algures dentro de si,
um ser de lume - um anjo mudo que o iluminava, revelando- lhe aquilo
que devia ou não silenciar.

E quando esse ser o fazia sentir árvore ou pássaro, todo o talento da árvore
e o nocturno voo do pássaro escorriam em si. E se a sensação de mar lhe era transmitida,
ele sabia que era um mar muito mais remoto e vasto que aquele
que diante de si se movia. .
Respirava fundo, tinha medo, e escrevia como uma condenação -
e nessa condenação encontrava um breve alívio para a dor das coisas vivas
e mortas que o rodeavam. E o corpo, sempre apaixonado,
tremeluzia quando o estranho anjo mudo lhe punha uma voz no coração.

Talvez seja por tudo isto que um dia nunca mais o lembraremos, nunca mais.
Mas neste preciso instante ele acabou de acordar, abre os olhos, arde,
é jovem ainda, e diz-me a sorrir:

 – Aqui tens o inocente revólver para a eternidade.



al berto
o anjo mudo
assírio & alvim
2000



03 fevereiro 2017

adnan özer / o conselho da minha avó




A minha avó dizia-me:
- não sopres as brasas
meu lindo menino não vão sujar-te os pulmões

decorreu-me a meninice como alento
expirado contra as brasas

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
e do jardim cor de ameixa seca
com os troncos das árvores ressequidos
e os seus vestígios de cal apagada

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
quis ver de novo à noite
a lua cheia, o bandoleiro do céu,
bebendo a água com lábios de prata
em sulcos de crisântemos

sempre me lembrei de ti
e dos gerânios entre os quais
compunha os meus primeiros versos
da rã com manchas verdes da minha poesia
e do estribilho dos ciganitos:
«rãzinha, rãzinha
com pernas de raminho»

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti
e da fronte enrugada do avô
que morreu anos depois de
sussurrar-me ao ouvido o meu nome

e da sua vide adornada
com campânulas entre águas-marinhas

os anos passaram
evolou-se dos sacos o cheiro a melões de inverno
acabou o bem-estar
de Abraão sobre a nossa mesa

minha querida avozinha sempre me lembrei de ti.


adnan özer
as asas de orvalho dos ventos
trad. jorge velhote
quetzal
1997



02 fevereiro 2017

amalia bautista / pensaram que era a paciente esposa



Pensaram que era a paciente esposa
e um herói. A que espera noite e dia
tecendo e destecendo. A que ignora
que nunca volta o mesmo que partiu.
E apenas sou uma maldita aranha.



amalia bautista
estou ausente
tradução de inês dias
averno
2013





01 fevereiro 2017

alexandre o'neill / o tempo sujo



Há dias que eu odeio
       como insultos a que não posso responder
sem o perigo duma cruel intimidade
coma mão que lança o pus
que trabalha ao serviço da infecção
São dias que nunca deviam ter saído
do mau-tempo fixo
que nos desafia da parede
dias que nos insultam que nos lançam
as pedras do medo os vidros da mentira
as pequenas moedas da humilhação

Dias ou janelas sobre o charco
que se espelha no céu
dias do dia-a-dia
comboios que trazem o sono a resmungar para o trabalho
o sono centenário
mal vestido mal alimentado
para o trabalho
a martelada na cabeça
a pequena morte maliciosa
que na espiral das sirenes
se esconde e assobia

Dias que passei no esgoto dos sonhos
onde o sórdido dá as mãos ao sublime
onde vi o necessário onde aprendi
que só entre os homens e por eles
vale a pena sonhar


alexandre o’neill
tempo de fantasmas
cadernos de poesia
novembro de 1951





31 janeiro 2017

edgar lee masters / a colina



Onde estão Elmer, Herman, Bert, Tom e Charley,
O irresoluto, o de braço forte, o palhaço, o ébrio, o guerreiro?
Todos, todos, estão dormindo na colina.

Um morreu de febre,
Um lá se foi queimando numa mina,
O outro assassinaram-no num motim,
O quarto se extinguiu na prisão,
E o derradeiro caiu de uma ponte quando trabalhava para e esposa
                          e os filhos –
Todos, todos, estão dormindo, dormindo, dormindo na colina.

Onde estão Ella, Kate, Mag, Lizzie e Edith,
A de bom coração, a de alma simples, a alegre, a orgulhosa, a feliz?
Todas, todas, estão dormindo na colina.

Ella morreu de parto vergonhoso,
Kate de amor contrariado,
Mag nas mãos de um bruto num bordel,
Lizzie ferida em seu orgulho à procura do que quis seu coração.
E Edith, depois de ter vivido nas distantes Londres e Paris,
Foi conduzida a seu pequeno domínio por Ella e Kate e Mag –
Todas, todas estão dormindo, dormindo, dormindo na colina.

Onde estão tio Isaac e tia Emily,
E o velho Towny ncaid e Sevigne Houghton,
E o major Walker que conversara
Com os veneráveis homens da revolução? –
Todos,todos, estão dormindo na colina.
Trouxeram-lhes filhos mortos na guerra,
E filhas cuja vida tendo sido desfeita,
Os filhos sem pai choravam –
Todos, todos, estão dormindo na colina, dormindo na colina.

Onde está o velho violinista Jones
Que brincou com a vida durante noventa anos,
Desafiando as geadas a peito descoberto,
Bebendo, fazendo arruaças, sem pensar na esposa, nem na família,
Nem em dinheiro, nem em amor, nem no céu?
Vede! Fala sobre os cardumes de peixes de antigamente,
Sobre as corridas de cavalo, outrora em Clary’s Grove,
Sobre o que Abe Lincoln disse
Uma vez em Springfield.


edgar lee masters
a rosa do mundo 2001 poemas para o futuro
tradução de jorge de lima 
assírio & alvim
2001




30 janeiro 2017

joaquim manuel magalhães / nada consentia



Nada consentia ainda o nosso amor.
Eu punha sobre os teus ombros os meus braços
anulado da gente mais agreste
e descobria o riso ao pé do teu.


Era o que sou e sabia cantar-


te, queria que visses em redor
toda a cinza a que tu não pertencias.
Tu vias. Eu cantava. Era o amor.

  


joaquim manuel magalhães
consequência do lugar
relógio d´água
2001



29 janeiro 2017

ricardo reis / deixa passar o vento



Deixa passar o vento
Sem lhe perguntar nada.
Seu sentido é apenas
Ser o vento que passa…
Consegui que desta hora
O sacrifical fumo
Subisse até ao Olimpo.
E escrevi estes versos
Pra que os deuses voltassem.

12-9-1916



fernando pessoa
poemas de ricardo reis
imprensa nacional - casa da moeda
1994



28 janeiro 2017

miguel torga / cântico de amor



Ama quem amas, como o vento
Ama as folhas do olmo
(Amor que lhes transmite movimento
E alegria).
Asa que possa andar no firmamento,
Só caminha no chão por cobardia.



miguel torga
nihil sibi
1948



27 janeiro 2017

manuel antónio pina / van gogh mondrian


Uma vez um anjo apaixonou-se por van gogh e veio vê-lo
van gogh pintou-o naquela cadeira, te acuerdas federico bajo
                                                                                      [la tierra?
o anjo depois foi-se embora  van gogh ficou com o tabaco
                                                                               [estragado

mondrian também tinha um anjo mas o dele era mau
não se importava com coisa nenhumas batia-lhe nos olhos



manuel antónio pina
as pessoas e outros poemas clóvis da silva
algo parecido com isto, da mesma substância
poesia reunida 1974-1992
afrontamento
1992