09 dezembro 2015

herberto helder / o poema


I

Um poema cresce inseguramente
na confusão da carne.
Sobe ainda sem palavras, só ferocidade e gosto,
talvez como sangue
ou sombra de sangue pelos canais do ser.

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência
ou os bagos de uva de onde nascem
as raízes minúsculas do sol.
Fora, os corpos genuínos e inalteráveis
do nosso amor,
rios, a grande paz exterior das coisas,
folhas dormindo o silencio
a hora teatral da posse.

E o poema cresce tomando tudo em seu regaço.

E já nenhum poder destrói o poema.
insustentável, único,
invade as casas deitadas nas noites
e as luzes e as trevas em volta da mesa
e a força sustida das casas
e a redonda e livre harmonia do mundo.
Em baixo o instrumento perplexo ignora
a espinha do mistério

 – E o poema faz-se contra a carne e o tempo.



herberto helder
poesia toda
assírio & alvim
1996



08 dezembro 2015

pedro oom / o homem bisado



Alegra-me ser todas as coisas e as sombras que elas projectam
ser a sombra dos teus seios e da tua boca
o criado de smoking branco que te agita os cabelos
para um cocktail estimulante e fresco
a mesa onde passo a ferro o teu corpo
as espáduas as coxas a curva macia dos joelhos
alegra-me ser o contorno da tua nuca e o binário motor dos
          teus braços
embora mais pequeno do que um corpúsculo celeste
sou os milhões de astros microrganismos estrelas
a rota de todos os navios perdidos
a angústia síntese de todos os suicidas
a forma de todos os animais conhecidos
o desenho rigoroso de toda a flora existente

Ontem em Paris hoje em Lisboa amanhã em Júpiter
caminho para a resolução de todos os problemas
sem a certeza de resolver qualquer deles
como se fosse uma máquina de somar parcelas
quatro vezes quatro oito vezes dez oitenta
sabe-me a vida ao que É
esta progressão assustadora de crocodilos bebendo limonada
Ontem fui a prostituta a quem paguei a noite
hoje serei talvez o inocente violentador frustrado
Sutmil é a cidade par aonde me evado todas as noites à aventura
e «os anéis de Saturno são a força centrífuga-centrípeta que me
agita os braços no espasmo amoroso»
a cabeça em Marte os pés na Terra
vindo «lá do fundo do horizonte lívido»

O comboio está na gare o comboio vai partir
apressemos o passo o momento é solene
somos o automóvel que sobe a avenida
a pulsação acelerada dos maquinismos
taxímetro de uma cidade de província
satélites de um satélite lunar
Tu és o aeroporto eu o avião que parte
e muito mais calmos entre éter e fogo
percorremos os sonhos de planeta em planeta desfolhando o
          futuro a flor sempre rara
e marcamos nos astros o nosso roteiro DEZ QUILÓMETROS

amanhã tirarei o curso de sonhador espacializado


pedro oom
surrealismo abjeccionismo
antologia organizada por mário cesariny
edições salamandra
1992




07 dezembro 2015

juan gelman / eu também escrevo contos


para o eduardo


Era uma vez um poeta português /
tinha quatro poetas lá dentro e vivia muito preocupado /
trabalhava na administração pública e onde
é que se viu um funcionário público de portugal ganhar para alimentar
[quatro bocas /

todas as noites fazia a chamada aos seus poetas incluindo-se a si mesmo
um estendia a mão pela janela e caíam-lhe astros /
outro escrevia cartas ao sul /
que estão a fazer do sul / dizia ele /

do meu uruguai / dizia / o outro
transformou-se num barco que amou os marinheiros /
isto é belo porque nem todos os barcos fazem isso /
há barcos que preferem espreitar pela vigia /

há barcos que se afundam /
Deus caminha aflito com um fenômeno assim /
é que nem todos os barcos se parecem com os poetas do português /
saíam do mar e secavam os ossinhos ao sol /

cantando a canção dos teus seios / amada /
cantavam que os teus seios chegaram uma tarde com um cortejo
[de horizontes
assim cantavam os poetas do português para dizer que te amo /
antes de se deixarem / estenderem a mão para o céu / escreverem cartas
[ao uruguai

que vão chegar amanhã /
amanhã vão chegar as cartas do português e varrerão a tristeza /
amanhã vai chegar o barco do português ao porto de montevideu /
sempre soube que entraria nesse porto e ficaria mais belo /

como os quatro poetas do português
quando juntos se preocupavam com o homem da tabacaria da frente /
o animal de sonhos do homem da tabacaria da frente /
galopando como don josé gervasio de artigas através da fome no mundo/

o português tinha quatro poetas a olhar para o sul / para o norte / para
[o muro / para o céu
a todos dava de comer com o salário da alma /
ganhava o ordenado na administração do país público /
e também a olhar para o mar que vai de lisboa ao uruguai /

estou sempre a esquecer-me de coisas /
uma vez esqueci-me de um olho na metade de uma mulher
de outra esqueci-me de uma mulher na metade do português /
esqueci-me do nome do poeta português /

do que não me esqueço é do seu barco rumo ao sul /
da sua mãozinha cheia de astros /
investindo contra a fúria do mundo / com
o homem da frente na mão



juan gelman
no avesso do mundo
trad. colectiva da casa de mateus
revista por ana luísa Amaral
quetzal
1998



06 dezembro 2015

luís vaz de camões / transforma-se o amador na cousa amada,



Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho logo mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.

Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois com ele tal alma está liada.

Mas esta linda e pura semideia,
Que como o acidente em seu sujeito,
Assim co'a alma minha se conforma,

Está no pensamento como ideia;
E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma.
  
luís vaz de camões
sonetos





05 dezembro 2015

mário cesariny / denúncia



esse girassol
amarelo e só
tem do que o sol
a luz que o rodou

não haverá tudo
do muito que é seu
fita mago e mudo
o azul do céu

e essa forte queixa
branda no acusar
a vida que o deixa
apenas fitar

no jardim sem fama
clama sem sinal
amarela chama
ao vento hibernal


mário cesariny
manual de prestidigitação
vizualizações
assírio & alvim
1981




04 dezembro 2015

sophia de mello breyner andresen / poema



Poema de geometria e de silêncio
Ângulos agudos e lisos
Entre duas linhas vive o branco.


sophia de mello breyner andresen
obra poética I
coral
caminho
1999


03 dezembro 2015

franco loi / mariuccia


Mariuccia,
as primeiras maminhas da minha vida,
sorriso maroto entre as grades da varanda,
tu, de ébano,
olhos de fuinha , a rapariga de sempre,
que sob as franjas da tolha verde, a ternura,
ali, debaixo de uma mesa, como gatos abraçados,
entre os sapatos das mães e das velhas bichanando,
ali, como uma flor em botão que me beijasse,
me oferecia, qual violeta, o belo veludo da sua graça,
a mim, o seu miúdo, que arrastava
com a mãozinha magra para o sótão,
e a voz que nos chamava para o anoitecer...
oh, as tardes da rua Cardano,
pátios de neblina,
sopros de bruma que vêm dos canais,
o Ernesto que aos sessenta já chorava pela mãe,
para ela que com a escova lhe fustigava a cara,
ele, sapateiro, embebedava-se com o homem das bicicletas,
e ela, velha, paralítica rameira,
grita: de joelhos!
de joelhos, seu malandro!
não te faças de novas, não mereces o pão!
e em baixo, das retretes, os resmungões sibilavam:
sacana do Ernesto, como um cacho!
e nós que com os garotos vozeávamos:
o Gigi! o Gigi!
passarinhávamos céleres,
e era o vendedor de castanhada que chamava do carrinho
por mim e pela Mariuccia, e pelos mundos secretos.



franco loi
memória
colecção poetas em mateus
trad. rosa alice branco
quetzal
1993



02 dezembro 2015

manuel gusmão / estudar o sol



estudar o sol
para conhecer o olhar;

que a rosa se desencadeie:

dividindo-os
sobre a mesa
operatória
do vasto mundo
em trânsito; voo
amoroso
para ti



manuel gusmão
dois sóis, a rosa
a arquitectura do mundo
caminho
1990



01 dezembro 2015

josé tolentino mendonça / os girassóis



Às vezes ouves-me chorar
não é fácil deixar a tua mão
De quarto em quarto
quem espera
o terror de não haver ninguém
As paisagens alteram-se sem resolução
narrativas imortais desaparecem
e os girassóis assim
vulneráveis a desconhecidas ordens

Tu estás tão perto
mas sofro tanto
porque não vejo
como possa falar de ti
entre dois ou três séculos



josé tolentino mendonça
de igual para igual
assírio & alvim
2001



30 novembro 2015

bernardo soares / irrita-me a felicidade de todos estes homens




Irrita-me a felicidade de todos estes homens que não sabem que são infelizes. A sua vida humana é cheia de tudo quanto constituiria uma série de angústias para uma sensibilidade verdadeira. Mas, como a sua verdadeira vida é vegetativa, o que sofrem passa por eles sem lhes tocar na alma, e vivem uma vida que se pode comparar somente a de um homem com dor de dentes que houvesse recebido uma fortuna — a fortuna autêntica de estar vivendo sem dar por isso, o maior dom que os deuses concedem, porque é o dom de lhes ser semelhante, superior como eles (ainda que de outro modo) à alegria e à dor.

Por isto, contudo, os amo a todos. Meus queridos vegetais!


fernando pessoa
livro do desassossego
por bernardo soares


29 novembro 2015

mircea dinescu / o morto hipócrita



Que fazes tu, literatura?
Perturbas alguns jovens ridículos da província
colocas o comerciante de papel
à mesa daquele com a barriga cheia de letras,
pões piolhos de ouro na cabeleira do boémio
e medalha no casaco do académico,
mas não podes adoçar a água do afogado
nem derreter a neve do leproso
nem engordar a sexta-feira do pobre.
Quando chegam os fiscais do Senhor
com a traquitana para medir o remorso
tu com os pombos
tu com as rolas
tu com os passarinhos
sobes à torre da Câmara
e deitas
um punhado de milho no caminho dos anjos apocalípticos
e não vês como o criminoso
faz cócegas à vítima no pátio
e o morto infame a servi-lo e a rir
como ri o morto cúmplice
o morto em vão
o morto hipócrita destas terras.


mircea dinescu
1950
roménia
poemas      
tradução de rosa alice branco



28 novembro 2015

vergílio ferreira / quase toda a gente gosta de saber o seu futuro


226 – Quase toda a gente gosta de saber o seu futuro e paga para isso a astrólogos ou às bruxas. Mas só na ideia de que esse futuro seja bom. E é o que eles lhes dizem para não fecharem a porta. Mas o negócio continuaria, ainda que te dissessem que morrerias no dia seguinte. Porque a morte é a única certeza em que não se acredita. Se fores condenado à forca e tiveres já a corda ao pescoço, o minuto que faltava seria ainda de vida, ou seja de eternidade.


vergílio ferreira
escrever
edição de helder godinho
bertrand editora
2001



27 novembro 2015

maria gabriela llansol / a véspera é um dia de grande potência cognitiva


55

A véspera é um dia de grande potência cognitiva,
Uma potência cognitiva revestida de forte
Sensibilidade sem emoção. Ver o que ainda se
Não conhece é uma rara particularidade
___________ que, por vezes, arrasa.
Quando olhou o vidro,
O vidro estava ao espelho _____ é a véspera.


maria gabriela llansol
o começo de um livro é precioso
assírio & alvim
2003